Che fora de Época
Ivan Marinho de Barros Filho*
Em 30.06.2020
Acabo de ler um livro da Biblioteca Época – Personagens que marcaram época. O que mais me surpreendeu no começo da leitura foi ver o tamanho entusiasmo com que a editora Globo apresentava a face revolucionária e humana de Ernesto Guevara de la Serna. E o livro, extremamente sintético, dá pinceladas na infância, na juventude e no período de engajamento revolucionário do comandante e lança, já no início, uma passagem comovente de tão expressiva, que convida o leitor a lê-lo de um só fôlego, visto que se trata de uma brochura de 111 páginas, com sete capítulos. Marilene Cohen abre estas páginas contando sobre a comemoração do aniversário de 24 anos de Fuser, derivado de Furibumdo Serna, apelido dado por seu companheiro de viagem, no dia 14 de junho de 1952, de um lado do Rio Amazonas, quando enfermeiras, médicos, cozinheiras e funcionários organizaram uma festa… Depois de ensaiar uns passos de mambo e fazer um discurso que declarava ilusórias as fronteiras que separavam as nações latino-americanas, saiu pra tomar um sereno às margens do rio e percebeu que não vinha luz das cabanas dos leprosos na outra margem e, ali, a autora imagina uma pergunta na cabeça de Guevara: “De qual lado do rio passará a vida?” Diante da negativa do barqueiro em transportá-lo para o outro lado, não hesita, salta no rio a despeito da correnteza e da asma e atravessa a nado, sendo aplaudido de ambas as margens.
O desconforto de Ernesto Guevara de la Serna era saber que a América Latina era uma só América, rica em história e oprimida pelos interesses do império estadosunidense.
Confessou, mais tarde, que um dos maiores acontecimentos de sua vida fora conhecer o comandante Fidel Castro, por sua capacidade de compreensão, coragem e audácia.
O livro expõe o Che como uma personalidade mítica, cultivada por pais rebeldes que enfrentaram Franco e Peron, sendo sua mãe presa pelo regime do primeiro.
Na sua luta contra a asma e as forças do regime tirano do ditador Fulgêncio Batista, Che consegue, com o comando de Fidel, vencer o segundo.
Nos governos de Urrutia e Dorticós, antecessores de Fidel Castro, Ernesto Guevara assume vários cargos no primeiro escalão da ilha, mas não deixa de praticar o trabalho voluntário no corte da cana, no plantio, etc.. Viaja vários países do mundo representando diplomaticamente a revolução cubana e não tarda por se decepcionar, segundo a autora, com os descaminhos do socialismo no bloco soviético. É aqui que a editora Globo diz a que veio: Tenta dar um contorno eminentemente romântico à postura do revolucionário e até a insinuar que, depois de uma reunião de portas fechadas com Fidel e Dorticós, Che tenha sido jogado para a morte na Bolívia. Isto por causa de um discurso de Guevara na Conferência Afro-Asiática de Solidariedade, onde critica o acordo entre a URSS e o USA, onde a primeira não implantaria mísseis em Cuba e o segundo (o singular é proposital), retirariam os seus da Turquia.
No final, com sutileza, como na citação anterior, Marlene Cohen, a serviço da editora Globo, lança mais um veneno: Põe na boca de Alberto Dias Korda, fotógrafo do retrato antológico de Che, a interpretação de que ali seu olhar é vago, perdido, difuso, quando o fotógrafo diz que “no olhar de Che estava pintado, escrito todo seu caráter e que é mais que um sonho, é a luta de um ser humano pelas coisas que acreditou até o final da vida”. Já esta verdade foi escrita no livro, mas em castelhano, pois nada tinha de vago ou perdido… Tinha de determinado, altivo, profundo.
Contudo, com olhar crítico, é válida a leitura, sem comprar o livro, é claro, pedindo emprestado, aconselho!
*Ivan Marinho de Barros Filho é professor e especialista em Economia da Cultura. Escreve às terças-feiras.
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Parabéns pelo texto, Ivan! Ele conflui com um artigo que escrevi, a quatro mãos com uma colega de graduação, sobre a viagem em La Poderosa e as transformações pelas quais Ernesto passou na viagem da Argentina à Venezuela. De fato, uma análise mais apurada demandaria a redação de uma dissertação ou tese, mas, por ora, pensar em uma face humana e anti-imperialista de Guevara é um ponto fundamental para entender o movimento de uma esquerda nos anos de 1950 “adelante”.
Rômulo Rossy Leal Carvalho quem assina o comentário acima.