As metáforas do coração

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 01.07.2020

Não ter certeza das coisas é algo irremediavelmente humano. A certeza é apenas um modo de acreditar que é o pensamento lógico que detém em si mesmo a verdade das coisas. Mas a verdade não é algo que se aprisiona num modo de pensar racionalista contido numa estrutura lógica. A verdade detém em si uma relativização e uma tensão permanente entre a dimensão simbólica e a dimensão racional. Um dos nossos maiores desafios, se quisermos saídas para situações que a priori parecem não ter saída, fundamentalmente questões emergentes que afloram na sociedade e geram crises degradantes da condição humana, é nos tornarmos capazes da religação do que  vem sendo fragmentado e re/aprender o diálogo das certezas com as incertezas.

Pode parecer ingênuo falar de uma “lógica da cárdia” para expressar uma racionalidade do coração, mas foi a racionalização da via cerebral que se estabelecendo na superfície das coisas fragmentou o mundo e o ser humano. Maria Zambrano, uma importante pensadora espanhola do século passado, fala-nos ricamente das “metáforas do coração” para nos fazer enxergar o coração como uma via lógica possível, de dimensão metafórica e polissêmica, como um modo de expressar uma racionalidade e enxergar o que habita no mais profundo do humano, lugar onde a racionalidade científica não pode alcançar.

O pensamento iluminista, predominante nos últimos quatro séculos, impôs uma devastadora desqualificação da subjetividade e da dimensão socioemocional. A máxima do filósofo René Descartes “penso, logo existo” sacramentou para a modernidade a racionalidade cartesiana como um modo único de pensar e, desde então, os últimos séculos foram guiados pela razão científica, o que a tornou uma religião quase inquestionável.

A questão, nisso tudo, é que assistimos, quase que passivamente, ao gradativo rompimento cultural entre a cultura científica e a cultura das humanidades. De acordo com o filósofo francês Edgar Morin, “A cultura científica é uma cultura de especialização, que tende a se fechar em si mesma. Sua linguagem torna-se esotérica, não somente para o comum dos cidadãos, mas também o especialista de outra disciplina. O saber em si mesmo cresce de forma exponencial e não pode ser abarcado por nenhum espírito humano.” (2013. p. 61).

Perdemos, com isso, a nossa capacidade de relação consigo mesmo, pois nos distanciamos imensamente da condição de reflexividade tão necessária para mergulhamos em nós mesmos, para fazermos o percurso em nosso interior e nos sabermos melhor e, dessa maneira, religarmo-nos em nossa integralidade através da conexão mente-alma-coração. No entanto, nos acercamos, cada vez mais, de mecanismos e instrumentos tão maravilhosos, doados pela ciência, que nos ensinam a entendermos, fantasticamente, sobre coisas e objetos, muito embora nos coloquem numa condição, cada vez mais, de sabermos menos sobre o ser humano.

Todavia, não se defende a negação da racionalidade no processo de construção de uma sociedade mais humana, firmada nas dimensões da curiosidade, da afetividade, da amorosidade. O que se deve evitar é a transformação da racionalidade em racionalização. A racionalidade é dialógica, aberta ao debate com as instâncias do saber do senso comum; reconhecedora da subjetividade, das possibilidades de erros e das dimensões afetivas. É também autorreflexiva. A racionalidade não é algo privado apenas aos técnicos e especialistas (MORIN, 2011). Sócrates (470 ou 469 / 399 a.C) só reconhecia a racionalidade na máxima “conhece-te a ti mesmo” que expressava a dimensão da razão, se esta estivesse intimamente articulada com o “cuidado de si mesmo” que tentamos resumir aqui como a dimensão da subjetividade e da espiritualidade humana.

Por outro lado, no dizer de Morin, “A racionalização crê-se racional, porque constitui um sistema lógico perfeito, fundamentado na dedução ou na indução, mas fundamenta-se em bases mutiladas ou falsas e nega-se à contestação de argumentos e à verificação empírica. A racionalização é fechada, a racionalidade é aberta. A racionalização nutre-se das mesmas fontes que a racionalidade, mas constitui uma das formas mais poderosas de erros e ilusões. Dessa maneira, uma doutrina que obedece a um modelo mecanicista e determinista para considerar o mundo não é racional, mas racionalizadora” (2011, p. 22) A racionalização, portanto, é uma porta fechada a qualquer possibilidade de re/conhecimento do humano, na medida em que esgarça o conhecimento como se fosse uma colcha de retalhos e desconsidera as dimensões subjetivas dos sujeitos, portanto, incapaz de encontrar soluções duradouras e sustentáveis para os problemas da sociedade e dos próprios seres humanos.

Mais do que qualquer outro momento na história da humanidade, é fundamental e urgente entendermos que as nossas possibilidades de enfrentarmos os complexos desafios do século XXI, com chances de alternativas viáveis à afirmação de uma sociedade sustentável, mais justa e mais humana, é assumirmos, na prática, uma necessária atitude de mudança e reaprendizagem do pensamento, reconhecendo que não teremos saídas que não sejam pelo princípio da cooperação, pela religação do fragmentado, pelo diálogo entre os diferentes e pela reconciliação entre o todo e as partes. Desse modo, podemos interromper a disjunção que cotidianamente executamos e gera a separação que adoece o planeta, que separa o que naturalmente não pode ser separado. Pois é assim que agimos: separando e adoecendo o planeta, seja em nossos ambientes de trabalho, nos gabinetes e escritórios, ou nas coisas que fazemos em qualquer quadrante deste planeta.

Carecemos de uma utopia que nos alimente o fogo da esperança e a crença na transformação. Somente aqueles que se libertarem da racionalização tecnicista e utilitária poderão ser utópicos e somente os utópicos serão capazes de tornar esse planeta um ambiente de relações menos problemáticas e convivências mais agradáveis e mais felizes. Mas do que nunca devemos ser utópicos, aquela utopia afirmada por Paulo Freire, algo que nos coloca no horizonte do possível, do factível, do realizável; uma utopia que não pode ser compreendida como idealização do inatingível, mas como denúncia dos processos desumanizantes e anúncio das formas de humanização.

A fragmentação do conhecimento, instituindo a ultraespecialização como panaceia para todos os problemas, nada mais fez do que gerar uma inteligência tecnocrática incapaz de enxergar a si mesma e, por isso, perdeu a noção do todo. Como afirma Morin: “Infelizmente, quanto mais temos conhecimentos especializados e limitados, mais temos ideias globais absolutamente estúpidas sobre a política, o amor ou a vida” (2013. p. 67).

A inteligência tecnocrática se expandiu para todas as áreas. Na medida em que a política engendrou, mais intensamente, a dimensão utilitária do tecnicismo, maior se tornou a sua incapacidade de resolução dos problemas, pois o tecnicismo que permeou a ação política criou um movimento de regressão de sua competência democrática (MORIN, 2012). Aliás, quanto mais a fragmentação do conhecimento foi incorporada pelos sistemas e a supervalorização das expertises foi defendida como condição sine qua non para se encontrar as soluções e resolver os problemas em todos os campos da sociedade, tanto mais têm regredido os espaços da democracia e, paradoxalmente, a nossa capacidade de encontrarmos saídas para as questões maiores que afligem a sociedade e desumanizam os seres humanos. Com isso, estamos cada vez mais afundando o planeta numa crise infindável, tanto socioambiental quanto ética.

A fragmentação do conhecimento e o esgarçamento das relações nos atingem diretamente, de maneira danosa, em grande parte de nossas vidas. Como resultado, mergulhamos num processo de desqualificação do humano e estamos, cada vez mais, nos coisificando. Como a escolha feita pelo personagem Neo, no filme Matrix, ao optar pela pílula vermelha, é mais que urgente apertar o sinal vermelho que nos fará reabrir possibilidades para nos reconhecermos no nosso mundo interior e no mundo social, como sujeitos de história, de cultura, de afeto e de espiritualidade.

A competividade de um contra o outro ganha mais espaço, e tudo vira um salve-se quem puder. A nossa formação educacional e, mais fortemente, a nossa formação profissional nos ensinam a competir contra o outro. Isso tudo tem gerado uma deformação do verdadeiro papel social da educação e de nosso papel político-social no cotidiano. Por essa razão, a nossa maior urgência, talvez seja repensarmos as políticas e os sistemas educacionais, a partir de uma profunda reflexão sobre nós mesmos e sobre nossa condição humana no mundo, perguntando-nos que educação estamos fazendo e qual educação queremos e precisamos, se, acaso, ainda desejamos, muito mais do que viver, existir neste planeta.

MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2013.

MORIN, Edgar.  Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2011.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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