O colírio
Jénerson Alves*
Em 01.04.2022
– Você se lembrou de aplicar o colírio?
A pergunta soou longe aos seus ouvidos, mas virou uma chave em seu coração. A lembrança exibiu em sua mente uma página amarelada em que se lia: “Comprem também colírio para os olhos a fim de que possam ver”. Mais do que um líquido para a vista da face, ele precisava de medicamento para a alma. Estava como aquele homem endividado que andava de um lado para o outro e não via o saco de ouro que recebera de presente.
– Você se lembrou de aplicar o colírio?
Repetida, a pergunta pareceu lhe acender um insight. E ascender uma consciência. Seus ouvidos reproduziram uma antiga ladainha: “Assim na terra como no céu”. Na realidade, a vida brota de dentro para fora, como os frutos gerados da árvore vêm de uma pequena semente que cria raízes. Estava precisando ver no mundo interno para poder desfrutar no externo.
– Você se lembrou de aplicar o colírio?
A amiga o indagou pela terceira vez. Pareceu Pedro, que precisou ouvir o cantar do galo por três vezes. Só então se deu conta de onde estava. Há alguns dias, fora diagnosticado glaucomatoso e sua rotina mudara… Porém, descobriu que precisava desvelar o essencial – que é invisível aos olhos. A melhor visão é a consciência.
Abriu uma janela em seu solilóquio e, timidamente, respondeu à jovem que, já ficando impaciente, o perguntava:
– Sim, lembrei. Obrigado por perguntar.
*Jénerson Alves é jornalista e membro da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel. Escreve às sextas-feiras.
Imagem: Narciso, de Caravaggio.