Relato em primeira mão de um médico de MSF em uma estação de metrô em Kharkiv, na Ucrânia

Por

Médicos Sem Fronteiras

Em 23.04.2022

Dr. Morten Rostrup, da Noruega, está trabalhando com MSF em Kharkiv fornecendo consultas médicas nas estações de metrô onde as pessoas estão se abrigando e traz o seu relato em primeira mão do que ele testemunhou e das histórias de pessoas que ele conheceu.

Crianças com muito medo de adormecer, pessoas que sentem que não conseguem respirar, pacientes com pressão alta que correm o risco de ter um derrame. Essa é a situação em uma estação de metrô em Kharkiv, no nordeste da Ucrânia.

“Ela estava sentada em um banco na minha frente em uma das estações de metrô em Kharkiv. Desde que a guerra eclodiu, as estações funcionam como abrigos e milhares de pessoas estão dormindo nas plataformas e nos vagões do trem. A mulher havia sido jogada da cama quando um foguete atingiu seu prédio. Ela tinha visto sua tia ser morta a poucos metros de distância dela. Ela não podia falar sobre isso, mas desabou em lágrimas enquanto se sentava olhando para baixo. Ela estava tremendo, mas não era a única que estava procurando cuidados médicos naquela noite. Havia muitas outras pessoas.

Uma menina de sete anos que tinha pesadelos constantes e tinha medo de adormecer. Pessoas sentindo dores físicas que não conseguiam explicar. Pessoas que sentiam que não podiam respirar. Uma mulher com pressão alta corria o risco de ter um derrame. Um senhor que me mostrou fotos dos seus três netos. Uma das crianças havia sido morta em um ataque aéreo dois dias antes, as outras duas estavam no hospital, uma delas gravemente ferida. O pai das crianças também foi morto. O senhor havia sofrido um derrame e tinha pressão alta. Ele não conseguia dormir.

Tive muitos encontros comoventes com pessoas diferentes nas últimas semanas. A equipe de Médicos Sem Fronteiras (MSF) viaja de uma estação de metrô para a próxima. À noite, realizamos dezenas de consultas médicas antes de retirar nossos sacos de dormir e passar a noite lá.

Tenho visto o desespero, a falta de esperança, a confusão, a incapacidade de compreender como acabaram nesta situação: perdendo familiares e amigos, perdendo suas casas, perdendo o futuro que haviam imaginado para si mesmos. Tenho visto a constante sensação de medo e como algumas pessoas entram em pânico quando escutam os ataques aéreos.

Antes de viajar para Kharkiv, passei alguns dias na cidade de Vinnytsia, que está localizada longe da linha de frente. Queríamos entrar em contato com psicólogos ucranianos que pudessem ajudar as pessoas deslocadas – muitas com trauma psicológico – que estavam passando pela cidade em busca de segurança em outros países.

Foi quando conheci Olena, uma psicóloga da Ucrânia. Seus olhos estavam pálidos durante nossa conversa. Ela tinha familiares na cidade sitiada de Mariupol e ouvia pouco sobre como eles estavam. Olena disse que não podia trabalhar agora. Antes da guerra, ela trabalhava como psicóloga clínica e tratava pacientes com problemas pessoais. “Os pacientes pararam de vir”, disse ela. “Os problemas que eles tinham antes parecem pequenos agora”. Olhando para mim, ela disse: “É um prazer conhecê-lo. Você está tão calmo. Você não tem o estresse e as preocupações que nós temos. O fato de você estar aqui tem um efeito de calma sobre nós”.

Eu trabalhei em muitas crises e zonas de guerra, mas nunca ouvi isso tão explicitamente declarado, que nossa presença tem um impacto tão significativo nas pessoas. O trabalho médico humanitário não se prende apenas com a ajuda concreta que prestamos sob a forma de medicamentos e tratamentos, mas também com a presença de pessoas de outros países e com a forma como se encontram ao lado das pessoas que estão passando por esta crise. Nossa presença pode proporcionar esperança, paz e um senso de segurança. Este é um símbolo concreto de que nos importamos. Estamos lá como seres humanos companheiros, diretamente e de perto. Eles não estão esquecidos.

A situação em Kharkiv é muito desafiadora. Ainda há ataques aéreos diários. Partes da cidade foram arrasadas. Metade da população de 1,5 milhão de pessoas fugiu. Alguns optaram por ficar ou foram incapazes de escapar devido à falta de recursos, parentes ou outros contatos, ou simplesmente porque eram muito idosos ou estavam doentes para viajar. Algumas das pessoas que conhecemos nos disseram que prefeririam morrer em sua própria cidade. Entendemos que muitas das pessoas mais vulneráveis não saíram. Muitas pessoas perderam suas casas, especialmente na parte leste da cidade.

Não sei quantos pulmões, gargantas e estômagos que examinei. Não porque eu tinha uma forte suspeita de que algo estava seriamente errado, mas porque eu sabia que um exame completo e uma conversa agem como uma garantia para os pacientes. Seus níveis de estresse são tão altos que apenas um pequeno sintoma pode causar ansiedade significativa para alguns pacientes. Quando lhes assegurei que não havia nada de errado com eles, eles me agradeceram. Eu vi o alívio em seus olhos. O medo de adoecer nessas circunstâncias atormenta muitos, especialmente os portadores de doenças crônicas.

É fácil ‘esquecer’ essas vítimas da guerra: as pessoas com transtornos mentais crescentes e aqueles que vivem com doenças crônicas. Quando uma guerra eclode e eles não recebem cuidados médicos de acompanhamento, doenças como essas podem ter consequências potencialmente devastadoras. Há pacientes com doenças cardiovasculares, doenças pulmonares, epilepsia, diabetes e câncer. Alguns morrem em contextos de guerra, talvez até mais do que aqueles que morrem de ferimentos causados diretamente pela violência. Outros são forçados a fugir para um lugar onde possam obter os cuidados médicos de que precisam, de preferência para outro país.

Ainda assim, é encorajador ver como as pessoas aqui estão se ajudando. Em cada estação de metrô, pequenas comunidades se desenvolveram. As pessoas que se abrigam lá estão bem familiarizadas umas com as outras. Grupos de voluntários trabalham para fornecer comida e água a todos. Um estudante de medicina de uma das estações tem um pequeno ambulatório e farmácia. Os banheiros estão limpos. Todos em Kharkiv estão contribuindo à sua maneira. Muitas contribuições também vêm do exterior. Vemos um forte senso de unidade, mas seis semanas* é muito tempo, especialmente quando você não pode ver uma solução em um futuro próximo.

Ainda está frio nas estações de metrô. Parece que a primavera chegará tarde à Kharkiv este ano.”

*Quando esse relato foi escrito

Foto destaque: Adrienne Surprenant/MYOP /2022