Escola domiciliar… o Congresso em seu mundo de fantasia

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 23.05.2022

Por que fazer uma emenda à Constituição se apenas 7,7% dos gestores municipais deixaram de cumprir o preceito constitucional? Convém saber que apenas 14% dos deputados federais votaram contra a emenda.

O Brasil vem enfrentando graves problemas relacionados à educação pública que atende cerca de 47 milhões de alunos no ensino básico, a partir dos quatro anos de idade.

Os indicadores estão aí para comprovar a ineficiência no processo de ensino aprendizagem, gerenciado por sistemas educacionais municipais e estaduais agregados e viciados às políticas eleitorais populistas e demagógicas ora vigentes no país, com recursos via de regra desviados de suas funções e professores com formação precária e mal pagos, embora cercados por órgãos fiscalizadores, a começar pelos conselhos do FUNDEB municipais e estaduais, tribunais de contas.

Não bastasse o descaso com a educação das crianças, adolescentes e jovens, que já vem de longe, o Congresso Nacional aprovou uma Emenda à Constituição, ou seja, uma PEC, em 27 de abril deste ano, “que livra de punição os gestores estaduais e municipais que não cumpriram o mínimo constitucional em investimento em educação em 2020 e 2021, em razão da pandemia”. (G1)

A Constituição estabelece que estados, o Distrito Federal e municípios devem aplicar, no mínimo, 25% da receita resultante de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino.

Vergonhoso!

No Brasil existem 5.570 municípios. Estudos do IBGE mostram que 67,7% dos municípios (3.770) têm menos de 20 mil habitantes e concentram 14,8% da população, com 31,6 milhões de habitantes, certamente os que mais padecem com a desigualdade social que avança país afora e com as dificuldades vivenciadas pelas escolas públicas e seus alunos, no que se refere a infraestrutura precária, ausência de material didático, uniformes e o que é mais sério, sem proposta pedagógica definida.

Segundo dados da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), 358 municípios não atingiram o percentual constitucional em 2020, com impacto negativo de R$ 1 bilhão para a educação. Em 2019, foram 72. A previsão para 2021 é de que 846 municípios não teriam alcançado 25% de despesas em manutenção e desenvolvimento da educação.

Por que fazer uma emenda à Constituição se apenas 7,7% dos gestores municipais deixaram de cumprir o preceito constitucional? Convém saber que apenas 14% dos deputados federais votaram contra a emenda.

Qual o compromisso dos congressistas com a educação de crianças e jovens, quando todos sabem que a qualidade do ensino impacta diretamente na vida da família e na economia do país?

É que estamos num ano de eleições majoritárias, talvez a mais conturbada e ameaçada do período republicano.

E o país segue trilhando as regras do mundo da fantasia e da ignorância, sobretudo no que se refere à educação, no momento que ainda é necessário superar os problemas relacionados à alfabetização e ao letramento e darmos passos alongados rumo ao que se convencionou chamar alfabetização digital, para melhor compreender o mundo, como diria Paulo Freire.

A nova invencionice aprovada pela Câmara Federal trata de uma proposta para implantação da escola domiciliar, uma imitação grosseira do que acontece em alguns países, contrariando o que é previsto no artigo 206, capítulo da Educação, em nossa Constituição Cidadã de 1988, que estabelece: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: 1- igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; 2- liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; 3- pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; 4- gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais.” (art. 206 da Constituição)

Somente a escola pública garante o espaço de socialização necessário ao exigido pelos princípios definidos e pelo apregoado espírito democrático e fraterno constante da Carta Magna.

O arremedo de regulamentação constante  do Projeto de Lei (PL) 3.179 de 2012, para a prática da educação domiciliar no Brasil, também conhecida como “homeschoolin”, ludibria a população e ignora que a grande maioria dos alunos matriculados no ensino básico nas escolas públicas brasileiras pertencem à famílias que vivem em condições de insegurança alimentar, vivem em moradias precárias e precisam do fortalecimento das políticas públicas educacionais, associadas a outras políticas sociais, necessitando inclusive da proteção da escola pública funcionando em tempo integral, de norte a sul do país.

Na enganosa regulamentação proposta pelos deputados congressistas está definido que “o estudante deverá estar regularmente matriculado em uma escola, que acompanhará o desenvolvimento educacional durante o período… também será exigida, de ao menos um dos pais ou responsável, a comprovação de escolaridade de nível superior ou em educação profissional tecnológica, em curso reconhecido… os pais também não podem ter antecedentes criminais”. (Agencia Brasil)

Lamentável! Desta vez, 144 deputados votaram contra.

Essa proposta não atende nem a necessidade das famílias ricas, porque estas já dispõem de escolas particulares nas mais variadas modalidades  e condições de mercado, também previstas na constituição.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Foto: g1.globo.com