Qual democracia precisamos?

Por

Fernando Silva*

Em 04.07.2020

O termo democracia tem significados diversos e é parte de disputas políticas, ideológicas e construções – partidárias, acadêmicas, midiáticas e das mais diferentes organizações e instituições. Aqui não se pretende adentrar em maiores aprofundamentos quanto às disputas e definições – necessárias e salutares – conceituais e/ou teóricas. Contudo, importa assinalar alguns aspectos que chamam atenção pelos enfoques apresentados.

Segundo Domingues (2020), professor da Universidade Católica de Pernambuco, a compreensão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) é de que a democracia brasileira se fortaleceu em 2019. No mesmo artigo, o professor traz importante levantamento da The Economist Intelligence Unit (EIU) sobre a democracia em 167 países. Nesse estudo, são analisados 60 indicadores, integrando cinco aspectos: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e as liberdades civis. O Brasil não é bem avaliado no estudo e aparece na 52º posição, situação pior do que anos atrás.

Será que os cinco aspectos indicados são suficientes para a definição de democracia? Definitivamente, não! Falta incorporar a dimensão social, com a perspectiva da equidade, nas análises, nos estudos, nas disputas e na luta pela democracia que precisamos. Por exemplo, um estudo realizado pela Oxfam (2020) informa que “em 2019, os bilionários do mundo, que somavam apenas 2.153 indivíduos, detinham mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas.” E mais, “o 1% mais rico do mundo detém mais que o dobro da riqueza de 6,9 bilhões de pessoas.” Portanto, é fundamental incorporar a dimensão social, com equidade, como necessidade política, ética e humana para a superação da crescente concentração da produção, da riqueza e da renda. E empreender uma busca, permanente e vigorosa, para que as dimensões de gênero, cor/raça/etnia, geração, LGBTQIA+ , endereço de nascimento/moradia, classe social e de opção religiosa não sejam estruturantes das desigualdades e sim dimensões presentes na inclusão com a equidade social na democracia que precisamos. Ou melhor, como aponta Iamamoto:

Essa consideração requer uma concepção de cidadania e de democracia para além dos parâmetros liberais. Como sustenta Coutinho (2000, p. 50), “a cidadania entendida como capacidade de todos os indivíduos, no caso de uma democracia efetiva, de se apropriarem dos bens socialmente produzidos, de atualizarem as potencialidades de realização humana, abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado”. Nesta concepção abrangente, a democracia inclui a socialização da economia, da política e da cultura na direção da emancipação humana, isto é, da erradicação dos processos de exploração, dominação e alienação. (2009. p. 27).

Frente às breves considerações, o propósito é oferecer contribuições à incidência política de organizações e movimentos sociais do campo democrático e popular, que ao longo das últimas décadas estão na luta para a ampliação das liberdades individuais e a melhoria na qualidade de vida para milhões de brasileiras e brasileiros.

O que fazer? Um caminho, pensando em contribuições, é propor e buscar responder indagações para quando pensamos e praticamos a democracia. Qual a democracia que temos e a qual democracia queremos, precisamos e merecemos? Quem faz parte das nossas diversidades na luta e mobilização por democracia? Como nos organizamos, em diferentes espaços públicos ou privados, e atuamos com as diversidades sem perder as especificidades identitárias? Devemos nos organizar e atuar por segmentos e/ou por direitos? Como aliar a luta por democracia e a garantia de Direitos Humanos? Qual compreensão temos sobre os Direitos Humanos? As questões relacionadas fazem parte de um falso debate (ou dilema) ou devemos tê-las presentes?

As respostas não podem ser apenas esperadas de um texto, limitado por diversos aspectos, especialmente, humano, teóricos e práticos do seu autor. Mas arriscarei, como, aliás, busquei fazê-lo no seminário promovido pela Escola de Formação Quilombo dos Palmares (Equip) e parceiros. O propósito é também oferecer proposições à caminhada, na organização, na mobilização e na luta política.

O seminário referenciado contou com as presenças de representações de vários segmentos nas rodadas de discussão e também com a ausência de outras a exemplo dos representantes dos segmentos de pessoas com deficiência, idosas, crianças e adolescentes. Outro aspecto interessante de se observar no evento e que me provocou algumas das perguntas postas no início deste texto foi a organização em grupos por direitos (cultura, comunicação e agroecologia) ou por sujeitos de direitos (mulheres, juventudes, indígenas, LGBT, negros e negras). Essa forma de organizar, embora seja evidente que refletem aspectos operacionais do evento, me fez refletir que se, os direitos debatidos são daqueles sujeitos de direitos que estiveram presentes (e também das ausentes) no evento porque separar os sujeitos dos direitos?

Mas, se o desafio é construir a democracia que precisamos, como lidar com as separações operacionais na nossa organização para a reflexão e luta? Haveria outra forma, além dessas separações – sujeitos e direitos – que possam ajudar a superar a insuficiente democracia que temos?

A terceira observação vinculada às duas primeiras, guarda relação naquilo, que denomino como “esquartejamento dos seres humanos”. Ou seja, percebe-se que é recorrente, no debate e nos posicionamentos, a não articulação das pautas identitárias com as mais amplas para os Direitos Humanos. A título de exemplo, apenas as pessoas representantes dos grupos LGBTQIA+ e negros/as destacaram a necessidade de serem consideradas as diversidades. Acrescenta-se o fato de todos os segmentos e integrantes dos direitos pautados afirmarem de que suas pautas/reivindicações devem ter centralidade própria. Se, cada um, deve ter centralidade, como construir uma pauta comum de atuação?

Lembro que em janeiro de 2017, quando estive à frente da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos da Prefeitura de Caruaru – PE, recebi um grupo de pessoas LGBTQIA+, e a pauta demandava ações necessárias ao segmento, entre as quais a reorganização do Conselho Municipal da População LGBTQIA+. No percurso da reunião, perguntei quem ali tinha até 29 anos. Todos presentes. Maioria de negros e negras. Então, a pauta não podia ser apenas da população LGBTQIA+. Era também para juventude, negros e negras. O que quero dizer, é que é impossível não transversalizar pessoas, identidades e direitos, quando pensamos na construção de democracia justa, inclusiva e sobretudo equânime social e economicamente.

No ano passado, fiz uma exposição, em Olinda, para um grupo de mulheres idosas, sobre democracia e conselhos, enquanto espaço de controle social. Identifiquei que as reivindicações de direitos das mulheres idosas são iguais aos de grupos de crianças, adolescentes e jovens: educação, saúde, lazer, cultura, esporte etc. Houve citação ao direito de acessibilidade para as pessoas idosas, que também é uma demanda das pessoas com deficiência. E ainda o direito à sexualidade das pessoas idosas, também presente em outros recortes etários.

Quanto ao direito de participação política, escutei de uma senhora, com mais de 60 anos, que é necessário rever a não obrigatoriedade do direito ao voto das pessoas idosas. Na opinião dela, estão ficando de fora do processo eleitoral por não “darem” votos e as candidaturas as ignoram em todos os processos eleitorais. São seres humanos sem “valor eleitoral”, afirmou. Seria: no mesmo evento, um gay relatou sofrer discriminação no segmento LGBTQIA+, justamente, por ser idoso.) São depoimentos individuais que me chamaram atenção. O que temos a dizer, a refletir e a fazer?

Em outra oportunidade, junto ao Conselho Municipal da Mulher da Cidade do Recife ao debatermos ações para a aérea, fiquei surpreso que nas ações do referido Conselho não estava previsto o enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, prática recorrente e perversa.

Portanto, não é surpresa ouvirmos, recorrentemente, e com razão, que as políticas públicas estatais são fragmentadas, que as diversas áreas dos governos são ilhas isoladas. Que as secretarias não dialogam e falta intersetorial no interior das administrações públicas. Tenho concordância, inclusive, nas minhas três (03) experiências em governos (Estado de Pernambuco e as prefeituras do Jaboatão dos Guararapes e de Caruaru) a articulação e integração das ações era uma tônica recorrente que não se resolvia, salvo melhor avaliação, apenas com modelos de gestões empreendidos.

Na minha experiência, em Caruaru lidava, diretamente com nove (09) conselhos municipais: Assistência Social, Direitos das Pessoas Idosas, Igualdade Étnica-Racial, Juventude, LGBTQIA+, Pessoas com Deficiência, três (03) Conselhos Tutelares e, indiretamente, com o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Dentre as várias dificuldades enfrentadas, me deterei apenas a três (03):

1) insuficiência de pessoas, com domínio de temáticas e direitos tão diversos e essenciais para compor os conselhos. A insuficiência tanto no âmbito da gestão municipal quanto de representações da sociedade civil;

2) pautas idênticas a mais de um conselho, mas na prática, sem articulação e integração suficientes para uma atuação mais orgânica. Por exemplo, os direitos da Criança e do Adolescentes passam pelos conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente e o de Assistência Social; os direitos das pessoas idosas tem interface com dois conselhos, (Assistência Social e Direitos das Pessoas Idosas), situação semelhante das pessoas com deficiência (conselhos das Pessoas com Deficiência, Assistência Social, Direitos da Criança e do Adolescente e dos Direitos das Pessoas Idosas);

3) a necessidade encontrar pessoas em número elevado para a participação qualitativa nas pautas dos direitos tão diversos, na perspectiva dos Direitos Humanos e da Democracia que precisamos.

Buscando respostas

Como superar e construir alternativas quando o isolamento das ações estatais tanto quanto os segmentos sociais são fragmentados? Como construir uma resposta ou respostas que apontem para a superação? Tarefa complexa. Mas vamos lá, temos obrigação de seguir em frente!
Compreendo que precisamos avançar nos debates, na forma de organização (sem perder as identidades) para atuação com maior capacidade de mobilização (política e numérica). Para tanto, é necessário que as demandas identitárias sejam articuladas as pautas que são comuns a todos os segmentos. À título de contribuição, entendo que a construção de um outro modelo de desenvolvimento, necessita ser centrado na superação das desigualdades humanas, sociais, econômicas e culturais, que são comuns a todas as pautas identitárias por gênero, cor/raça, geração (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos), pessoas com deficiências, população LGBTQIA+, o endereço de nascimento ou moradia e opção religiosa. As diferenças e especificidades devem alimentar a construção coletiva.

Que todos os segmentos (movimentos e organizações de mulheres, trabalhadores sem-terra, sem-teto, criança e do adolescente, pessoas com deficiência, negros, negras, indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas e população LGBTQIA+ possam ter atuação no tocante:

1) a não aceitar a hierarquização dos direitos humanos. Ou seja, não se admitir que para a maioria da população seja garantido alguns direitos e tantos outros negados. Os direitos à educação, saúde e segurança, tão propagados por candidatos/as e pela mídia, não são mais importantes do que o direito à alimentação, ao lazer, ao esporte. Sobre a não hierarquização dos direitos humanos é importante ter presente que a Declaração e Programa de Ação de Viena (1983) estabelece que “Todos os Direitos Humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados.”
2) a luta pela constitucionalização do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), previsto para acabar em 2020;
a luta pela geração de emprego e renda, que não estejam reféns de processo de precarização da classe trabalhadora, sendo inadmissível, os milhões de desempregados ou na informalidade;
3) a mobilização para a revogação da Emenda Constitucional N.º 95/2016, que congela por vinte (20) anos, os investimentos do Governo Federal na área social;
4) a proposição de que a Reforma Tributária seja instrumento de desconcentração de riqueza e renda e não perpetue o modelo atual, que faz justamente o contrário;
5) o enfrentamento às violações de direitos, violências e homicídios contra mulheres, crianças, adolescentes, jovens indígenas, população LGBTQIA+, idosas, pessoas com deficiência, negros e negras, adeptos de religiões de matriz africana, entre outros;
6) a comunicação seja defendida e praticada como direito humano de todas as pessoas, com suas diversidades, em sentido amplo nos meios, na produção e na mensagem;
7) aliar a defesa do Estado Democrático e de Direito, tendo presente a proposta da reforma do Sistema Político Brasileiro (www.reformapolitica.org.br.);
8) aos processos eleitorais, a cada dois (02) anos, sejam potencializados como oportunidades para o exercício do controle social e para a construção da democracia que precisamos.

Os pontos acima, e/ou inúmeros outros, podem compor uma agenda para estabelecer 10 prioridades para as candidaturas as prefeituras e câmaras municipais em outubro próximo. Aliás, o processo eleitoral de 2020, poderá ser uma oportunidade para que todos os segmentos do campo democrático e popular das organizações e movimentos sociais possam por em prática uma agenda comum, inclusive, frente aos partidos políticos e a mídia, de modo geral.

Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil (junho2020) e hiperlink.

*Fernando Silva é mestrando em Educação, Culturas e Identidades da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) e integrante do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Olinda – PE. Recife, PE. Junho de 2020. jfnando.silva@gmail.com

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