Monólogo do espelho

Por

Jaques Cerqueira*

05.07.2020

– Não sou apenas essa superfície lisa e espelhada, que parece limitada a um espaço pregado na parede do quarto. Não. Sou, na verdade, um espaço profundo e misterioso que vai além, bem além de realidades momentâneas.

– Me enche de amargura essa minha sina cotidiana de ter refletidos em mim diferentes olhares, que não conseguem ir além da minha superfície de cristal. Entretanto, eu consigo ver em cada uma dessas pessoas que se detêm diante de mim uma realidade que nenhuma delas enxerga.

– Sabe, eu nunca entendi por que quase ninguém chora na minha frente. Só me procuram para retocar a maquiagem, ajeitar os cabelos em desalinho, conferir os dentes limpos em sorrisos forçados, verificar se a roupa ficou bem… essas coisas mundanas do dia a dia, que me cansam profundamente.

– Confesso que me alegro quando vejo crianças brincando, fazendo travessuras diante de mim, rindo, pulando, imitando adultos… Aí, não consigo segurar meu sorriso.

– Mas, quando essa dona de casa metida a rica resolve passar o batom olhando-se em mim, sinto asco. Percebo nela um poço de arrogância e falsidade. E o marido? O bobo da corte que acredita ser um galã e passa um bom tempo retocando a barba. Quanto desperdício!

– Nos últimos dias, venho notando umas manchas que começam a surgir na minha parte inferior. Talvez efeito da maresia provocada pela proximidade com a praia. Talvez. Mas também pode ser resultado dessa minha amargura em refletir imagens de pessoas que não gosto.

– Se essa mancha opaca me incomoda? Claro que incomoda. Já imaginou se esse espaço sem reflexo começa a avançar para tirar todo meu brilho? Melhor que eu me desfaça em mil estilhaços do que não servir mais para cumprir minha sina. Triste sina, por acaso.

– Outro dia, pensei que eu seria muito mais útil se as pessoas pudessem se ver em mim exatamente como são. Amargas, ruins, carregadas de ódio ou vítimas de ciúme doentio… Seria minha vingança. Mas não tenho esse poder. Triste sina a minha de ser espelho, que só mostro a superfície das pessoas.

– Qual a melhor parte do dia, para mim? Ah! É quando anoitece e as luzes da casa se apagam. Só então adormeço e esqueço que nasci espelho.

*Jaques Cerqueira é jornalista e escritor. Escreve aos domingos.

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