O tempo e a quarentena

Por

Ayrton Maciel*

Em 05.07.2020

E se passaram quase quatro meses. O tempo parou. É como o enfermo que, felizmente, derrotou o vírus. Anestesiado, entubado, despertou depois de 100 dias na UTI. Para ele, tinha sido no dia anterior. Porém, agora, está com um hiato em sua vida. O tempo não será emendado. Isolado, distanciado, quarentenado, o tempo perdido não tem resgate. Perdeu para o que poderia ter feito, para o que poderia ter sido. O tempo não tem emenda.

A vida não é arte. Viver não é arte: nem sempre há opção, nem sempre há condição de escolha, nem sempre há oportunidade. Em algum tempo é bela, em outro é espera, perda e passado. Os velhos sonhos – os da juventude – vão passando: não houve chance – não viu a hora passar ou não procurou ou não lhe foi dada -, por não estar atento ao tempo, por não cuidar do tempo que passa. Não tem como emendar. Passou, passou.

Eis que a quarentena acende a luz sobre o que parecia morto. O tempo perdido, passou nele a opção que não houve, a escolha que não fez e a oportunidade que não teve. Aí, vem a redescoberta da memória. A quarentena divide o tempo, mas desperta os sonhos. Lá na memória, adormecidos no subconsciente, estão eles, dividindo os espaços da juventude.Quatro meses: não é possível emendar o tempo.Servem para reviver o que se arquivou.

Ler, escrever, estudar. Dividir tarefas que antes relegava – lavar pratos e panelas, limpar a casa, passar a roupa, cozinhar -, assistir telejornais, ouvir noticias, saber sobre a pandemia. Sentar na varanda, contemplar o horizonte e esquecer que o tempo está passando. Não bastam. É preciso redescobrir, estimulado pelo tempo, agora grande e parecendo vazio. Impulsivamente, vai-se ao subconsciente e lá estão eles, os sonhos, adormecidos. É o despertar da memória. A juventude revista.

O tempo não perdoa a opção que não foi feita, a escolha que não houve, a oportunidade que não se teve. Dirão uns que oportunidade se conquista. Isso é acreditar que justiça (o conceito abstrato) é para todos. Quantos “merecidos” ficam no caminho. O mérito não é sinônimo de chance, sorte, oportunidade e, sim, aliado do poder. O tempo que passou não volta. E quando os sonhos despertam, certamente não há mais tempo.

O tempo que passou está perdido. Não há todo o tempo do mundo, por isso, não há tempo a perder (sofisma com Renato Russo na letra Tempo Perdido). Eis que no “ilhamento” não são só panelas, leitura, notícias e o olhar no horizonte. Vai-se ao arquivado no tempo, remove-se a poeira alérgica da matéria e a poeira que cobre a memória. Pronto: ali está o tempo que inspirou sonhos, atiçou a rebeldia, ergueu voz contra a injustiça, propôs a queda do sistema, projetou o idealismo de uma nova sociedade.

Mexe-se na matéria empoeirada, e descobre-se obras não lidas, outras que quer reler, outras que promete um dia ler. Mexa-se no que está em teias, papel comido por traças em meio a cocô de baratas, e descobre-se que ainda tem 101 long-plays (os vinis) de alguns dos ídolos da juventude e de suas bandas inspiradoras. Outros se perderam por qualquer motivo: aí, recorremos agora ao tempo moderno – o tempo não se emenda, prossegue entre espaços perdidos – e descobrimos nos canais digitais os heróis preservados.

Eis todos resgatados, menos o tempo. Beatles alucinando e abrindo o rol das grandes bandas (transição do iê-iê-iê para o rock); a guitarra de Jimmy Page e a bateria John Bonham na Led Zeppelin; a banda de todas as bandas, Rolling Stones em vinil; Emerson, Lake and Palmer (em Wembley vazio); o rock antissistema de Pink Floyd; a explosão rebelde de The Who, a instabilidade de The Doors.

Para todos os gostos, a progressista Yes, o hard-rock de Deep Purple, Black Sabbath e Kiss; o pop-rock de Queen, o pós-punk de The Police e o rock alternativo de U-2. E para contestar, Bob Dylan. O tempo não para. Nós o perdemos. Uma quarentena divide o tempo, mas redescobre sonhos.

* Ayrton Maciel é jornalista. Escreve aos domingos.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.