A inesgotabilidade da criação

Por

Ivan Marinho*

Em 07.06.2020

É sem pressa que nos encontramos com o tempo, ou o tempo se encontra conosco e se desfaz em nós, bem como nos desfazemos nele. Essa fusão nos desobriga da condição animal permitindo-nos pisar em terras sem propriedade, originais com relação ao que ultrapassa o tomo histórico ou mesmo científico. Foi sem pressa que me encontrei com o mestre Urian Agria de Souza no Burburinho, quando já me despedia de uma “mesa” pragmática, vaidosa e luxuriante. Pro bem de meu espírito, a “mesa” tornou-se despojada, simples e comprometida. É comum nascer desses encontros o desejo de comunhão, de descobertas, de revelações.

OLHOS DE ÍNDIO

Isso de olhar
Um sopro de folhas
Que caem rítmicas
E frenéticas
De uma árvore…
Ou outras
Que brincam com o vento
De serem bandeirolas,
Tira-me o tempo
De olhar pras horas.

Sabe daqueles momentos em que alguém começa a cantar uma música que você está pensando? Pois é. A palavra chegava para afirmar aquilo que já se configurava como pensamento no outro. Claro que devemos considerar aqui a especificidade, ou originalidade, de cada olhar.

E, em pleno século XXI, estávamos conversando sobre a pintura, ferramenta que compartilhamos enquanto linguagem pessoal. Mas não é a nós que deve surpreender a constatação do início do parágrafo, mas, aos vanguardistas de plantão que, incitados pelas elucubrações psico-filosóficas do início do século passado, partiram cegos para um futuro refratado, impalpável como o próprio futuro, entregue a transitoriedade, sem o encanto do maravilhoso, dádiva exclusiva dos espíritos racionais, inesgotáveis, mas cientes da morte e de seu mistério, portanto, muito mais responsáveis pela vida.

É claro que nos contrapomos à idéia de esgotabilidade da criação. Impossível encontrar sentido, a não ser o de presunção equivocada, no quadro preto de Ad Reinhardt denominado de Última Pintura. É muito simples concluir sobre isto, basta pensar que, mesmo num só estilo, é possível criar, sempre, uma nova música. É infinita a possibilidade de combinações de notas, acordes, tons… Há tantos anos ouvimos o Xote e a cada ano novo nos encantamos com as novas composições de Maciel Melo e Petrúcio Amorim, os dois maiores compositores do gênero na atualidade.

Urian expunha, naquele momento, seu exercício de tentar reunir na sua criação o significado caboclo de sua formação, numa busca muito mais de si próprio do que do reconhecimento social. Enquanto eu discorria sobre a busca da unidade na pintura, numa observação muito mais perceptiva do que temática: o encontro do conjunto na própria obra. Como, apesar de secundário, o tema faz parte de minha pintura, agravado pela ligação à cultura popular brasileira, encaro-o como um desafio, pois não permitiria que viesse a iludir o espectador a partir de um indumentarismo pueril muito melhor representado pelos artesãos dos brinquedos populares, mas buscando no seu condensamento a unidade de espírito de sua manifestação.

Sobre a particularidade da linguagem pictórica, concluímos que passa por uma leitura muito mais da alma do que do intelecto, daí algumas pessoas sem formação acadêmica apontarem mais fielmente os pontos mais sutis expostos na tela, expressões do embate do artista no que diz respeito ao que se quer dizer e a forma que se diz. Tenho, nesta encruzilhada, retrocedido várias vezes, retomando trabalhos de muitos anos e mergulhando em seus problemas até encontrar sua “palavra final”. Não acredito no esgotamento das possibilidades de criação, no entanto, acredito no esgotamento do dizer pictórico na obra individual. Como na execução de um mantra, acredito que a obra se completa quando se pode contemplá-la sem questioná-la, como dizia Pollock, como quem olha um jardim. Para isso é preciso que exista um encontro entre a sinceridade da expressão (enquanto descoberta individual do artista), sua unidade rítmica e cromática. Muitas vezes dei por concluída, de forma autoritária, trabalhos que não conseguia resolver, aqueles que você assina e não entende porque não gosta deles. Alguns, quando são expostos, mais pela complexidade do que pela qualidade, são apontados como os melhores, mas mesmo assim não nos satisfazem. Esse exercício do olhar, esse exercício da individualidade, essa disposição para encontrar a solução, a unidade, é a chave para a descoberta da expressão própria, que não é maior ou menor do que outras, mas é única, é a que põe o artista, não diante de si mesmo, mas em si mesmo.

Ivan Marinho é professor, especialista em Economia da Cultura. Escreve às terças-feiras.

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