De volta ao Poço do Boi

Por

José Ambrósio dos Santos*

Em 18.07.2024

E com tantas coisas juntas e misturadas, inclusive perfume e fumo de corda (fumava cachimbo usando fumo selecionado pelo genro, tio Zuza, que comercializava fumo de corda no Mercado Público de Moreno), a trouxa tinha o cheirinho dela, um cheirinho inconfundível, que adorávamos.

Não tem jeito. Mais uma vez a lua cheia (de beleza, recordação, inspiração) me transportou para o Poço do Boi, um pequeno sítio constituído por familiares aos pés da Serra das Russas, no município de Pombos, que antes integrava o território de Vitória de Santo Antão (PE). Foi de lá que saí aos seis anos de idade, na primeira metade da década de 1960. Para lá costumo voltar nas noites de lua, sempre a avivar lembranças marcantes de um menino que nada conhecia além daquela pequena comunidade formada principalmente por tios, tias, primos e outros parentes.

O que me recordo daquele período é muito pouco, porém gratificante, por se tratar de coisas simples, mas com dois ingredientes que caracterizavam aquela gente humilde: o amor e o compartilhamento. O amor dos nossos pais herdados dos nossos avós, mas nesta crônica vou destacar a minha avó materna, Maria Tereza da Conceição, carinhosamente chamada de mãe, Mãe Có. Era esse o nome dela. Não precisava mais.

Mãe Có ao lado do genro, José Cândido (Zuza) e a bisneta Jeane – Foto: acervo da família

Desprovida de bens materiais, Mãe Có distribuía o que tinha de melhor e em abundância: amor e muito carinho. Ela vivia na casa da tia Biu, que morava na Catinga, área repleta de pedras, lajedos e vegetação de caatinga, daí o nome, Catinga, como chamavam. Ficava a algumas centenas de metros da nossa casa, mais próxima do núcleo central. Não a conheci vivendo em seu próprio lar. Não sei em qual momento passou a morar com a tia Biu. Viúva (não conheci meu avô materno) e certamente sem posses, foi morar com a filha mais velha.

Estrada de acesso à Caatinga

Era uma casinha pequena. As pessoas adultas precisavam se agachar para entrar pela porta da cozinha, a mais utilizada pela meninada. E era cheia de meninos e meninas. Não me recordo da fachada da frente. Bem próximo morava Etelvina (Teté), segunda de uma prole de 13 filhos de tia Biu: Bií, Rosa, Da Paz, Graciete, Maria José (Zezinha), Lourdes, Ana (Taninha), João, José, Gabriel, Manoel e Braz.

Minha mãe – Ana Maria dos Santos (Santana) – caçula, tinha quatro irmãs: tia Biu, tia Siva (Severina), tia Maria. Não tenho lembranças da última. Tia Biu e tia Siva eram fantásticas. Amorosas e carinhosas tal qual minha mãe. Elas tinham um relacionamento lindo.

Não tenho recordações da casa onde nasci, pertinho da pedra da coruja. Passamos a morar em uma casa anexa à da minha avó paterna, Mãe Joaninha (que abordei recentemente na crônica Saudades do Poço do Boi (link https://falouedisse.blog.br/?p=4205).

Quando escrevia essa crônica caía uma chuva fina em Candeias (Jaboatão dos Guararapes) e eu logo me lembrei do cheiro de terra molhada da minha terrinha. E ainda das goteiras nas casinhas simples, das latas e jarras de barro nas extremidades das bicas para juntar água. A quartinha sempre fresquinha, com copos de alumínio (sete crianças e adolescentes).

Em sítios, naquela época, menino quando começava a correr passva a ajudar no dia a dia da família. Me recordo ajudando na preparação da terra para plantio. Coisas leves, uma forma de as crianças terem sempre alguns adultos por perto. É claro que sou contra o trabalho infantil. Criança precisa estudar e brincar. E eu, na verdade, ficava era brincando no roçado. Brincava muito e me divertia com o cachorro viola, sempre farejando pequenos animais silvestres (preás, tatus), e o cavalo ventania saboreando gramas verdinhas.

Achava muito bonito quando meu pai (Ambrósio Manoel dos Santos) chegava montado em ventania. Parecia gigante. Saía correndo no meu cavalo de pau acompanhado pelo meu irmão caçula, Antônio Marques. Era divertido.

Quinto de sete filhos – pela ordem de chegada: Laura, Manoel, Severino (Biu), Joana Bernadete (Betinha), Zé Ambrósio, Antônio Marques (Toinho) e Ana Elisabete, esta nascida em Moreno -, me lembro com muito carinho do esmerado cuidado que Laura tinha comigo. Minha segunda mãezinha. ‘Lalinha’, como chamávamos, nos deixou no final do ano passado.

Ainda me lembro daquela linda mocinha adolescente e de Betinha na capelinha construída sobre um rochedo e que representava o centro da comunidade, acompanhando minha mãe, minhas avós, tias e uma reca de meninas bonitas. Misericórdia! Galeguinhas e moreninhas, todas primas, uma linda mistura de cores. Três delas arrebataram os corações dos meus irmãos e se tornaram minhas cunhadas. Nicinha (Manoel); Taninha (Biu) e Lúcia (Toinho). Nicinha também já nos deixou.

Gostava muito quando nas tardes/noites das quintas (ou sextas-feiras) íamos nas casas de parentes – nas margens do açude – que preparavam legumes para a comercialização nas feiras. Cheiro forte de cebolinha, cenoura, alface e coentro sendo selecionados. O destino, feiras livres de Pombos, Vitória de Santo Antão, Amaraji, Primavera e Escada. Muitos produtores ainda conduziam suas mercadorias em lombo de burro. Quando anoitecia os candeeiros eram acesos e a sala ganhava também o cheiro de querosene jacaré. Escultura do Padim Ciço no oratório a abençoar aquela gente que todos os anos agradecia participando das romarias a Juazeiro do Norte, no Ceará.

Açude do Poço do Boi, ao lado da casa de Militão

Do que me recordo daquele período só vai até os seis anos de idade, quando nos mudamos e fomos morar em Amaraji. Mas tenho muitas lembranças do convívio restabelecido a partir dos nove anos, quando saímos de Amaraji para morar em Bonança (Moreno), que naquela época se chamava Tapera.

Quando mamãe ia a Moreno visitar Mãe Có e a irmã tia Biu, se estabelecia uma disputa entre mim, Toinho e Betinha para decidir quem ia também. Sempre sobrava cara feia. Dinheiro curto para as passagens de ônibus e a preocupação para não gerar despesa. Ninguém tinha muito sobrando na família.

Depois fomos morar em Moreno, mas passamos pouco tempo e nos mudamos para o Cabo de Santo Agostinho.

Como era bom quando voltava a Moreno. Mãe Có sempre lá, a nos abrigar e nos dar o carinho que só aquela velhinha linda sabia dar, e por isso foi unanimidade entre os netos e bisnetos. Pessoa terna, doce, amável, atenciosa, carinhosa. Tudo o que tinha, além das roupas e utensílios de uso pessoal, era uma trouxa que todos pediam que abrisse nas visitas. Tinha sempre ‘um agrado’ para as netas e os netos. Um biscoito, um doce, uma rapadura. Qualquer coisa bastava.

E com tantas coisas juntas e misturadas, inclusive perfume e fumo de corda (fumava cachimbo usando fumo selecionado pelo genro, tio Zuza, que comercializava fumo de corda no Mercado Público de Moreno), a trouxa tinha o cheirinho dela, um cheirinho inconfundível, que adorávamos.

Até que em um dia de 1980 ela nos deixou.

Não sei se ao se aproximar do fim da jornada ela costumava voltar ao Poço do Boi, terra de bons frutos, como bem definiu a prima Luciana Bezerra.  Do Poço do Boi ou com origem na terrinha saíram professores, economistas, advogadas, médicas, engenheiros, jornalistas, artistas plásticos, entre outros profissionais, além de religiosos como o padre Manoel Marques de Miranda e comerciantes, atividade herdada dos antigos tropeiros.

Entre os comerciantes está a matriarca da rede de Supermercados Arco-mix, com sede no Cabo de Santo Agostinho, Antônia Severina dos Santos, que há quase 40 anos iniciou a construção do empreendimento ao lado do marido Armínio Guilherme dos Santos. Filha da tia Siva, Antônia saiu do Poço do Boi muito jovem. Por lá ainda ficaram mais tempo as irmãs Joana, Santana, Terezinha e Judite, além do irmão Joaquim.

Prosperaram também como comerciantes, entre outros, os primos Antônio e José Miguel, proprietários da Verdfrut, com sede em Vitória de Santo Antão, e outros empreendimentos. Filhos da tia Regina, irmã do meu pai.

Mãe Có nos deixou há 40 anos, mas estamos sempre nos lembrando dela. Meus filhos Juliana e Tiago – que ela não conheceu – a conhecem e sabem do carinho que temos por ela. Assim como outras dezenas de netos, bisnetos, trinetos – Letícia, minha netinha – e tetranetos.

*José Ambrósio dos Santos é jornalista, escritor e integrante da Academia Cabense de Letras.

Esta crônica foi publicada pela primeira vez em 01.11.2020.