O neoliberalismo como Ibeji

Por

*Mário Gouveia Júnior*

Em 17.07.2020

 As duas faces da fábula que encanta os capitalistas sem Iphone e as necessidades pela configuração de novas normalidades

Antes de quaisquer outras considerações, cabe enfatizar que a interdiscursividade e a transdisciplinaridade presentes no texto são flagrantes, e graças a elas é que serão apresentadas as reflexões a seguir, ilustradas por uma Filosofia que transborda os conceitos e teorias e encontra ecos e outras provocações na Música e na Literatura. Agradeçamos aos filósofos franceses Michel Pêucheux (1990) e Edgar Morin (2011); à mitologia/filosofia Yorubá; e a meia dúzia de brasileiros com mentes inquietas, que, em suas artes, embutiram as preciosas contribuições que sustentam muitos dos argumentos que virão a seguir.

Na cosmovisão Yorubá, Itans é como são chamados todo o conjunto de mitos, lendas e canções de tempos imemoriais, que são aceitos como verdades históricas e transmitidos oralmente, por gerações, pelos babaláwo – sacerdotes do oráculo Ifá. Compreendem 256 volumes, chamados Odù, divididos em capítulos, denominados Ese. Nesse sentido, é Muniz Sodré, quem diz que os mitos, as lendas e os contos populares sempre se constituíram como vias de acesso ao inconsciente de um povo.

Ibeji, de acordo com os Itans, quer dizer gêmeos; duas entidades distintas que coexistem em meio a sua dualidade. O que nos faz atinar para o fato de que todas as construções sociais, como também as vivências, dispõem de, ao menos, dois lados, duas medidas, duas versões. Os Ibejis, cultuados como orixás, se dizem donos da verdade porque revelam esse dualismo.

Não é por conta da alegria, inocência ou ingenuidade regidas pelo Ibeji, que chegaram a enganar a morte e salvar homens e mulheres, como nos ensina Reginaldo Prandi (2001), que esta divindade se aproxima do neoliberalismo, mas, fundamentalmente, por conta de suas peculiares contradições, e, muitas vezes, por conta dos hiatos entre seus discursos e práticas.

Gilberto Gil e Herbert Viana, ao nos presentearem com a canção “A Novidade”, trouxeram essa perspectiva dual entre o busto de uma deusa maia e um grande rabo de baleia; um milagre risonho e um pesadelo medonho. Isto é, essa novidade que tanto se deseja e busca-se como panacéia, por vezes, pode ocultar terríveis efeitos colaterais. Será?

Milton Santos (2000) nos ensina que o ápice do processo de internacionalização do capitalismo pode ser percebido na íntima relação entre o neoliberalismo e a globalização. Relação essa tornada possível graças à emergência e popularização da Internet, que tornou o mundo “pequeno” e “rápido”; pequeno por conta da superação de barreiras geográficas no tocante à disseminação de informação, e rápido justamente pelo fato de as comunicações terem cada vez maiores possibilidades de se fazerem em tempo real.

Tal perspectiva de supressão de fronteiras dessa suposta “aldeia global” alimentou os sonhos do neoliberalismo como modelo ideológico econômico, sobretudo por seus imperativos de redução da participação do Estado na economia e a adoção do livre mercado. Nesse contexto, enquanto a globalização é entendida como um processo que objetiva tornar o mundo um grande mercado, o neoliberalismo se apresenta como um norteador da política econômica dos países, objetivando seduzir ou convencer um número tanto maior quanto possível de países acerca de seus encantos ou cantos de sereia, a depender da posição de cada um desses países, se no centro ou na periferia global.

Em seus estudos sobre a globalização, Santos (2000) considera a existência de divergências entre o seu discurso e as práticas que se revelam. Chama de globalização como fábula, a construção ideológica que faz crer que a rápida disseminação de informações, culturas e padrões de consumo de produtos e serviços, efetivamente atende às demandas dos consumidores e oportuniza que todos os elos da estrutura, seja entre países (desenvolvidos ou em desenvolvimento) seja entre sujeitos (produtores, criadores/desenvolvedores, vendedores, entregadores, por exemplo), tenham ganhos reais. Do mesmo modo, faz crer no consumo como sinônimo de fonte de felicidade.

A globalização perversa é a outra face. Desmascara-se o desemprego, o subemprego e a uberização do trabalho não só como condições toleráveis, mas como necessárias à lógica do capital, que, inclusive, estimula a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos. Desmascara-se, por conseguinte, a oferta por uma educação de qualidade, praticamente só acessível a quem pode pagar. Desmascara-se a pobreza e o abismo social, sobretudo no contexto de uma pandemia como a que vivenciamos, em que ficar em casa é privilégio de poucos.

E agora, José? José, para onde se a chave está na mão, mas não existe porta?

E agora, José? José, para onde se a chave está na mão, mas não existe porta? Vem o questionamento drummondiano. Não são apenas o Josés e Marias que estão, aparentemente, sem saídas. O neoliberalismo, como qualquer paradigma estabelecido há muito, mostra sinais de crises e fraturas à medida em que:

1) se percebe que todas as suas premissas que envolvem o individualismo, a competitividade, a eficiência, o sucesso, o estilo do homem que se faz por si mesmo, por seus próprios esforços, de nada valem ante a uma situação de anomia (como guerras ou pandemias) em que se constata a fugacidade da vida, e, ainda, do capital, que, inadvertidamente, gira a roda da fortuna, e arruína projetos, empresas e economias. O capital é a dama que vai com quem lhe der mais. Nessa relação entre o sujeito e o dinheiro, não existe amor, nem fidelidade, que dirá felicidade;

2) em busca dessa felicidade fugaz, as pessoas abrem mão de sua subjetividade (a individualidade não era um dos apanágios neoliberais?) para se enquadrar nos parâmetros estabelecidos para o consumo de moda, arte e cultura catalisados pela dinâmica das redes sociais, que apregoam o exibir-se ou evidenciar o TER. Não ser visto ou curtido, ou seguido, significa não ser consumido; e isso gera frustrações diversas e pode levar a ansiedade e depressão;

3) O medo de não atender aos padrões emerge como causa-consequência da ansiedade, ambos alimentando-se mutuamente. Ser um cidadão respeitável, que tem um corcel 73 (como diria Raul Seixas em começos da década de 1970) é o sonho de muitos, mas não a sua realidade; e a vontade de alcançar a satisfação do TER é o que move o sistema, isto é, a eterna possibilidade, de um dia, a sorte lhe sorrir.

Sim, o neoliberalismo se vangloria da meritocracia, mas flerta com a sorte. E se utiliza dela para convencer aqueles que ainda são oprimidos pelo sistema à devida resiliência, acreditando que um dia tudo pode mudar. Esse canto da sereia segreda em nossos ouvidos que todos podem chegar lá. Fazer morada na Avenida Felicidade, n. 7, no bairro da Pasárgada, onde se é amigo do rei, e, por conseguinte, se tem a mulher que se deseja na cama que escolher; onde os sonhos mais mirabolantes tornam-se uma trivialidade digna do poema famoso de Bandeira. Mas o rabo de baleia, o que é? É a mão invisível de Smith esbofeteando miseráveis, invisíveis e capitalistas sem Iphone.

Graças à ideologia disseminada de que o esforço pessoal pode transformar qualquer realidade, muitos Josés e Marias acham que a culpa é sua por não vencer, por não atenderem aos padrões socialmente impostos. E agora, José? Tem Caetano razão? “Será que apenas os Hermetismos Pascoais, os Tons, os Mil(tons), seus sons e seus dons geniais nos salvam, nos salvarão dessas trevas, e nada mais?”

Não precisamos de heróis nem de novos normais, de novas regras que sigam estimulando a competitividade; a gente precisa é de outro modelo; a gente precisa buscar a manutenção de alguns dos novos padrões estabelecidos por conta da pandemia. A renda mínima universal faria com que cada uma das pessoas tivessem ao menos as condições básicas de sobrevivência garantidas, e a partir de então, pudessem contribuir para a sociedade com o melhor de si, de acordo com suas capacidades. A verdadeira revolução acontecerá quando todos os sujeitos puderem trabalhar com o que lhes enche os olhos e aquece o coração.

O novo normal que eu, que não sou da geração do Maio de 68, mas desejo na medida do impossível, é um novo normal onde cada norma, cada modelo, cada padrão, seja estabelecido em prol da superação de todas as formas de opressão. É histórico, a norma social nasceu da necessidade de se estabelecer boas convivências entre as pessoas. Mas hoje, o que são as normas? Um corpo normal, uma mente normal, uma vida normal exclui as demais?

Muitos padrões e normas oprimem a mulher, o negro, o obeso, o transgênero… entre tantos outros. Medidas, limites e cercas limitam e machucam, violam o direito de cada um ser-estar.

Esse novo mundo precisa mais de pontes do que de muros, mas como fazê-los se ainda não sabemos dos caminhos por onde vamos, ou sequer se existem ruas? Nem na partida nem na chegada, a aprendizagem será ao longo da trajetória, como diria Guimarães Rosa, onde, ao caminharmos, faremos o caminho. Neste caso, é mais fácil escolher o que não se quer levar nesta viagem; evitando os excessos, lapidando as inutilidades, o peso do caminhar será menor. Ainda menor será este peso, e mais longe iremos se estivermos dispostos a seguir com outros.

“E aprendi que se depende sempre, de tanta muita diferente gente; toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas”. Nesses Caminhos do Coração, de Gonzaguinha, pode estar o norte para se (re)pensar em uma outra globalização. E, nesse sentido, a inteligência coletiva revela as mais belas e interessantes experiências, e com ela, (bem como com o pensamento sistêmico, o capital social, e a ação em rede) temos ainda muito a aprender-ensinar, “amando e mudando as coisas” em meio às alucinações do dia a dia e das experiências-delírio com coisas reais ao melhor estilo Belchior.

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Referências

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. 4.ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1990.

PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000