Carta a Douglas Menezes

Por

José Ambrósio dos Santos*

Em 25.11.2024

“Ah, sessenta e quatro, separo-te os algarismos, e somo depois, cada número e aparece a nota máxima dez. A certeza, então, de que não vais voltar jamais, as sementes já fincadas ao solo só têm espaço para a germinação fecunda de flores, frutos, justiça, trabalho e um país mais nosso.”

Estimado amigo. Ontem, folheando o livro Douglas Menezes, um operário das letras, no qual publico diversas crônicas de sua autoria, reli a que tem como título 64. Isso mesmo, apenas 64, escrita e publicada no dia 31 de março de 2014. “Porque a madrugada ainda é tímida, não deixemos a noite de trevas voltar jamais. Coturno batendo forte, no barulho tétrico prenunciando a dor e a mordaça calando as muitas vozes. Baionetas em riste, legiões do império dominador do mundo. Gente acreditando na fantasia de uma salvação ilusória. Um menino viu, ainda sem entender, uma movimentação estranha em sua cidade. Era sessenta e quatro chegando para instalar a grande noite, sem sequer um candeeiro para iluminar o futuro, onde não havia luz no fim, nem túnel. Então, não vacilemos um segundo, não joguemos fora o generoso sangue dos que perderam a vida nessa luta para que voltássemos a falar.”

Assim começava aquela crônica escrita há dez anos e meio, com um alerta para que os democratas não vacilassem um segundo, para que “não joguemos fora o generoso sangue dos que perderam a vida nessa luta para que voltássemos a falar.” Pois bem, amigo. Você nos deixou em plena Quarta-feira de Cinzas, no dia 26 de fevereiro de 2020. Já naquele momento, segundo ano do capitão presidente Jair Bolsonaro, muito provavelmente já estava em andamento nos quartéis e em gabinetes de Brasília, inclusive no Palácio do Planalto, um plano para que os militares permanecessem no poder em caso de vitória da oposição, confirmada em novembro de 2022 com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para um terceiro mandato presidencial. Gestava-se desde então ou mesmo bem antes um novo golpe de Estado.

A permanente vigília dos democratas, como você clamava, impediu a consumação da operação Punhal Verde e Amarelo, como eles – que se autoproclamam de patriotas – cunharam a pretensa quartelada. Tramada por generais e outros oficiais, claro, com auxílio de civis, a cortante operação previa até mesmo sangrar de morte o presidente Lula, o seu vice Geraldo Alckmin e o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, também integrante do Supremo Tribunal Federal (STF), responsável por inquéritos que dificultavam a movimentação dos “patriotas” golpistas.

Eles -Lula, Alckimin e Moraes – seriam “neutralizados” por meio de envenenamento, tiro ou bomba.

Ocorre que além da ação vigilante das instituições e entidades democráticas, também dentro dos quartéis havia resistência explícita ao golpe de Estado, enfim desmascarado e que levou à prisão de vários militares e até um general. E ao indiciamento pela Polícia Federal do próprio Jair Bolsonaro e do seu candidato a vice-presidente, general Braga Neto. Aliás, dos 37 indiciados, 25 são militares da ativa e da reserva. Gente também de pijama tramando contra a Nação Brasileira que democraticamente elegeu um adversário da extrema-direita.

Um presidente que enfrenta os crescidos tentáculos de uma extrema-direita voraz  e agora robustecida com a volta de Trump à presidência do EUA. E a Operação Contragolpe, investigação iniciada pela Polícia Federal em 19 de novembro deste ano, com autorização do Supremo Tribunal Federal, para apurar crimes relacionados à tentativa de golpe de Estado que visava impedir a posse de Lula e Geraldo Alckmin, eleitos presidente e vice-presidente, contribui para esse esforço de se assegurar o estado democrático de direito restabelecido com o fim do regime militar que perdurou por 21 anos, até março de 1985.

Encerro essa carta com o seu último parágrafo da crônica 64:

Ah, sessenta e quatro, separo-te os algarismos, e somo depois, cada número e aparece a nota máxima dez. A certeza, então, de que não vais voltar jamais, as sementes já fincadas ao solo só têm espaço para a germinação fecunda de flores, frutos, justiça, trabalho e um país mais nosso.

É isso, por enquanto, amigo.

Até um dia.

*José Ambrósio dos Santos é jornalista, escritor e integrante da Academia Cabense de Letras.

Nota do Editor: Poeta, escritor, contista, professor e compositor, Douglas Menezes de Oliveira é considerado o maior cronista do Cabo de Santo Agostinho nas últimas quatro décadas.