Artigo

Réquiem para Vital Farias, cantador das sagas brasileiras

Xico Sá*

Em 09.02.2025

Artista paraibano morreu nesta quinta (6/02), vítima de infarto. Deixa uma história de sucessos, combate à Ditadura e brasilidade

Veja você, cantor é aquele que canta segundo as circunstâncias — inclusive as condições de contrato, a busca do sucesso,as exigências profissionais que o fazem cantar, em muitas ocasiões, de fora para dentro. Cantador, segundo Xangai, é o que canta de dentro pra fora — eternamente.

Veja você, por isso que é mais triste quando parte um cantador do que qualquer outro artista, pois lá se vai alguém que traduz aquele aperto no peito que a gente não saberia decifrar sem uma das suas cantigas. Um tradutor das dores do mundo quando a vida aperta de um jeito que nos deixa em dúvida: é infarto ou desespero?

Veja você, quando parte um Vital Farias, não é apenas questão de ficar triste tal o blues do assum preto lá no sítio Pedra d’Água, município de Taperoá, no Cariri da Paraíba, a terra do homem feito de barro e berro. É profundissimamente, como no advérbio do também paraibano Augusto dos Anjos, um desmantelo inalcançável.

Veja você, não cabe em nota oficial de autoridade, seja prefeito, governador ou presidente, o sentimento dessa hora. “Sem palavras” também não abarca, por mais que o silêncio tenha mais força que o alarido das repartições.

Veja você, arco-íris não mudou de cor, “arco-íris ficou apenumbrado”, repare que homenagem fez a Farias Jessier Quirino, homérico narrador das epopeias e miudezas nordestinas.

Veja você, digo, ouça: Vital com Elomar, Geraldo Azevedo e Xangai, no vinil “Cantoria”, tem o volume 1 e o 2. Dois discos que mostram, giro a giro da agulha, a real diferença entre cantores e cantadores. Esqueça os provençais, troveja aqui nos sertões.

Veja você, Vital Farias, o popular e o erudito, fez parte também de “Gota d´Água”, a tragédia greco-brasileira de Chico Buaque e Paulo Pontes, em 1975, no Rio de Janeiro.

Sem se falar, veja você, no nó que o trovador paraibano deu na Ditadura para levar “Alice no curral das maravilhas”, uma das suas canções mais emblemáticas no tempo das trevas: “Afinal, eu não posso dizer/ Que esse grito contido em segredo/ É uma simples projeção do medo/ Cada canto que se cante nessa casa/ Cada berro, tropicale-se/ Na hora”.

Ah, você há de sussurrar aí no canto da sala, pena esse flerte com a direita no tempo das eleições, um cara tão combatente, como pode ter acontecido isso com o bardo?! Besteira, menino, não pega nada nem fica nódoa, todo mundo tem seus desenganos, foi apenas um piado de um vim-vim, noves fora nada no conjunto de vida & obra de um cantador inimitável.

Veja você, seu Vital, lhe ouvia na Patamuté FM, rádio de Cajazeiras, no dia em que parti pra cidade garantida, proibida, o Recife das revoluções e gaias amorosas. O “trem da consciência” apitou na serra das Antenas — ou terá sido na Serra das Almas? — e seguiu para o sítio Seio de Abraão, onde se perdeu nas brumas do semiárido. Até outro dia, homem das sagas.

*Xico Sá – Escritor e jornalista, faz parte da equipe de apresentadores do ICL Notícias. Com passagem por diversas redações e emissoras de tv, ganhou os prêmios Esso, Folha, Abril e Comunique-se. Participou de programas como Notícias MTV, Cartão Verde (Cultura), Redação Sportv, Papo de Segunda (GNT) e Amor & Sexo (Globo). É autor de Big Jato (Companhia das Letras) e A Falta (Planeta), entre outros livros. O colunista nasceu no Crato, na região do Cariri cearense, e iniciou sua trajetória profissional no Recife.

One thought on “Réquiem para Vital Farias, cantador das sagas brasileiras

  1. Grande Vital! Como eu cantava essa música em cima de caminhonetas,indo para os comícios de Lula Presidente,em Recife na sua primeira candidatura. Fica mais uma lacuna na música brasileira.

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