Só se desilude quem se ilude¹, revisitada

Por

Ivan Marinho de Barros Filho*
Em 21.07.2020

DESMUNDE²

Como é tolo acreditar nas palavras!
Como é tolo acreditar!
A vida é jogo, é esquiva.
Depois do almoço, o jantar.

Quem reza o terço da vida
Não conta à mesma conta
E, se o faz é cativa,
Do mundo, sequência pronta.

Trinca de ás, sonho besta
Quando o garçom traz a nota
Da conta.

O poema diz do meu espírito melhor do que poderia dizer uma crônica, mas o espaço é de crônica e o estado parece ser crônico. É duro transitar bambo sobre o paradoxo de duvidar da palavra e, ao mesmo tempo, fazer uso dela.
Há algumas décadas ouvíamos o Ivan Lins cantar “desesperar jamais, cutucou por baixo, o de cima cai … cutucou com jeito, não levanta mais…” e agora, depois de cutucar, o que vemos é a nossa cultura, a dos prazeres imediatos e não compartilhados, afirmar-se mais forte que todos os desejos revolucionários contraculturais. Depois de toda constatação histórica de que o homem ontológico, espiritual, sem a humanidade material, econômica, não passa de uma abstração pequeno-burguesa e que a humanidade material, econômica, sem a espiritualidade, sua perspectiva ontológica, não passa de uma realidade animal consumista, ainda nos polarizamos sob os mesmos pressupostos. É preciso ter coragem para confrontar a aparente ingenuidade da Utopia de Thomas Morus à aparente cientificidade do Príncipe de Nicolau Maquiavel, como o fez no Elogio à Loucura outro contemporâneo dos dois primeiros escritores aqui citados, Erasmo de Roterdã.

A Rita Lee diria que “quanto mais tem, mais quer” e Zé Geraldo, “tudo isto acontecendo e eu aqui na praça dando milho aos pombos”.

É preciso aliar o acesso à escola à boa qualidade do ensino, o acesso a espetáculos a boa qualidade artística, o acesso à saúde ao bom serviço médico-hospitalar, o acesso ao voto à responsabilidade com as organizações de base, o acesso à justiça com a publicidade das leis e uma procuradoria pública ao alcance de todos, o acesso ao alimento com a qualidade do que se produz, enfim, o direito à vida no sentido amplo, onde caiba, principalmente, o direito de sonhar para além das mesquinharias individuais, com o bem comum.

Quem sabe assim, todos com possibilidade de acesso à trinca de ás e sem sequências forjadamente prontas, a conta possa ser dividida dignamente, com direito à gorjeta para o garçom.

¹Esta parte do título é do poeta Ericson Luna, amigo-irmão elevado à eternidade em 2007.

²Poema de minha autoria presente no livro Anti-horário, edição independente, 2000.

*Ivan Marinho de Barros Filho é professor, especialista em Economia da Cultura.