Refém do obscurantismo
Ayrton Maciel*
Em 26.07.2020
Um drama nacional nas formas de calamidades humanitária e política. A catástrofe que a Covid-19 diariamente multiplica tem a cumplicidade da indiferença oficial e um efeito paralelo no fosso político brasileiro. Refém do obscurantismo histórico, do messianismo religioso, da aversão à ciência e à cultura e do sectarismo ideológico, Jair Bolsonaro – que em 2018 teve 57 milhões de votos, contra 47 milhões de Haddad e 42 milhões de indiferentes – perdeu a oportunidade de construir uma ponte entre os paredões do cânion político brasileiro, fenda que o presidente aprofundou sem escrúpulo e sem receio de qualquer traço de remorso.
O combate ao inimigo invisível carecia de unidade. Tempo passado, gesto não adotado, e agora não cabe mais. A cegueira de Bolsonaro o incapacitou para a visão de estadista, postura que poderia ser retribuída com a pacificação política e a composição de uma base não-fisiológica no Congresso. Ganhou o radicalismo, perdeu o país. O cânion ficou mais largo e mais profundo. Hoje, pesa sobre suas costas, as do ministro Eduardo Pazuello e as dos generais que se acumpliciaram no Planalto a conta das mais de 86 mil mortes de brasileiros. A dor nacional poderia ter sido menor.
Ao invés do diálogo e da unidade contra a crise sanitária que se avizinhava, o capitão declarou guerra a governadores e prefeitos, negou o perigo à frente, buscou desacreditar as recomendações científicas, desarticulou o ministério da Saúde, reteve e retém recursos, quis esconder as estatísticas, zombou e zomba da morte e de tantos (“um dia todos morrem”). Sem coordenação e sem a interação União-Estados, cada governante ficou e fica por si.
Reconheça-se, porém, que cada um por si, e em esforço titânico, teve o papel de impedir uma catástrofe maior do que a da mancha da morte que cobriu o país. É coisa de “morte matada”… Embebido na escuridão da crendice e no ocultismo, Bolsonaro não é um enviado. Ele crê nisso, mas, pela conduta, mais se assemelha a Nosferatu. Diante do mal em série, só a lei é seu juízo final, por isso tão odiada. No entorno, nada parece florescer. Afinal, para que servem generais? Se nem para o cercar de lucidez ou plantar jardins são úteis?
O mal que Bolsonaro faz ao país não se mede (apenas) pelas “mortes morridas” pela Covid-19 ou “mortes matadas” pela indiferença governante - como distingue João Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina -, mas (também) pelas mortes que virão e pelo fosso político alargado. Cem mil vidas, em breve, não serão nada, pois – como dito -, “todos um dia vão morrer”. A morte atual é apenas antecipação. E a política é só uma vale profundo.
Se Bolsonaro ‘ama odiar e ser odiado’, e quer multiplicar seguidores com esse sentimento, cabe ao Brasil refletir sobre ‘enviados e capetas’, uma etapa histórica de 520 anos que o país não consegue vencer. Tudo figurativo e mitológico. O país está sempre esperando ‘enviados’ e nunca sabe como conter ‘nosferatus’. Mais dramático é que em torno de ‘assombração’ sempre há um séquito cego e inflamante. O Brasil de dois dramas se olha no espelho e se divide entre o Narciso e o descrédito, opostos que não criam pontes nem sob uma pandemia. Esse crédito é ‘nosferatu narciso’, pois o país está sob a sua Era.
Dinheiro que seria para salvar vidas nos Estados, não gasto; respiradores contratados, são cancelados; medicamentos para entubar pacientes, em falta; sem espaço para corpos, envia contêineres frigoríficos; governadores adotam quarentena, a mídia serve para desqualificá-los. Tudo sob o riso despótico em helicópteros, jetskis, motos e cortejos.
Bolsonaro e seus gestores talvez respondam (talvez não respondam) pela omissão e indiferença em cortes judiciais ou políticas, a partir das denúncias, mesmo que as consequências sejam só simbólicas e para resguardar a dignidade humana. No entanto, o julgamento histórico, a julgar o dos ‘nosferatus governantes’ maiores e menores, que a humanidade já registrou, será impiedoso.
*Ayrton Maciel é jornalista. Escreve aos domingos.
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