Celso Furtado, 100 anos: base para se pensar um novo projeto de país

Por
Marina Duarte de Souza/Brasil de Fato-São Paulo
Em 28.07.2020

Paraibano foi um dos principais intérpretes do país e um dos maiores economistas do século 20

Um dos maiores economistas brasileiros, Celso Furtado (1920-2004) dedicou sua vida a entender o Brasil e a produzir projetos de transformação nacional. Neste sábado (26), ele completaria 100 anos.

Criador de uma obra inovadora com uma leitura contemporânea das contradições do capitalismo, o economista, nascido na cidade de Pombal (PB), foi o único brasileiro indicado ao Prêmio Nobel de Economia, em 2013. Com uma bibliografia de mais de 30 livros, ele investigou a mecânica do subdesenvolvimento do país.

Para o professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), Alexandre de Freitas Barbosa, o intelectual está no mesmo patamar dos grandes intérpretes do Brasil dos anos 1930, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., com um diferencial: além de compreender aquele contexto, Furtado “atuou sobre ele”.

Desde o início da carreira, em meados dos anos 1940, o paraibano é reconhecido por sua originalidade técnica e atuação prática. Furtado ultrapassou os limites da academia e se tornou um gestor público, ocupando cargos políticos e técnicos centrais para o desenvolvimento do país.

Celso Furtado foi responsável pela criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), uma das metas do governo Juscelino Kubitschek, e integrou o governo de João Goulart na condição de Ministro do Planejamento. O economista também lecionou em universidades estrangeiras e participou da transição democrática e da estruturação do Ministério da Cultura.

Passados mais de 15 anos do falecimento de Furtado, especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato consideram que sua produção, ideias e trajetória continuam vivas e relevantes para compreensão da sociedade brasileira.

Teoria do subdesenvolvimento

Celso Furtado formou-se em Direito no Rio de Janeiro, serviu na Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e doutorou-se em Economia na França. Em 1949, mudou-se para Santiago, no Chile, para integrar a recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), órgão da ONU voltado para o desenvolvimento regional.

A Cepal era o centro de debates sobre os aspectos teóricos e históricos do desenvolvimento da época. Durante oito anos, Furtado sedimentou as bases de novas concepções sobre desenvolvimento econômico e subdesenvolvimento latino-americanos, compreendendo a economia com uma visão interdisciplinar e humana.

Por volta de 1950, o paraibano denunciou que o subdesenvolvimento não era uma etapa do desenvolvimento, mas uma condição estrutural. Ou seja, os países não são “em desenvolvimento” ou “atrasados”, como se dizia na época.

A economista e doutoranda em Desenvolvimento Econômico na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Juliane Furno, explica que Furtado não só fez o diagnóstico do problema, mas propôs alternativas.

“Como o subdesenvolvimento é uma condição estrutural, para rompê-lo são necessárias transformações muito significativas na sociedade. Para Furtado, não era um problema apenas de planejamento econômico ou de técnicas econômicas, mas um problema fundamentalmente político. Enfrentá-lo requer uma postura, uma vontade política nacional de empreender transformações estruturais na realidade brasileira”, explica.

Furtado apontava dois eixos para superação do subdesenvolvimento: um Estado nacional comprometido com os anseios populares brasileiros e um processo de industrialização acelerado, que tiraria o país da condição de exportador de produtos primários.

“Essa foi a grande contribuição dele: apontar a necessidade de um processo de transformação estrutural da base de oferta de mercadorias. Era preciso uma indústria forte, para que a gente não seguisse refém das trocas desiguais do mercado interno ou dos ciclos econômicos. Em resumo, ele entende que esse processo precisa ser coordenado pelo Estado”, acrescenta Furno.

“Ao mesmo tempo em que desenvolve uma diversificação, do ponto de vista econômico, o Estado também fornece estruturas capazes de construir um mercado interno de consumo, de desconcentrar renda, de propor um sistema fiscal tributário que contribua para o desenvolvimento e investimento, e não para desoneração e favorecimento dos setores empresariais privados”, completa a pesquisadora.

Propostas como essas foram reunidas em 1959, em um dos livros mais conhecidos de Celso Furtado, “Formação Econômica do Brasil”. Em sua obra-prima, o paraibano descreveu a evolução da economia brasileira, inserida no paradigma latino-americano, por meio da análise da estrutura produtiva de cada período histórico.

“Esse é um livro não só sobre o passado, mas também sobre o presente e o futuro. Ele buscou descrever a cadeia de processos que trouxe o Brasil para os anos 1950, em um período de industrialização, e decodifica esses processos por meio do que chamaria de subdesenvolvimento”, afirma o professor do IEB.

Barbosa explica que Furtado não formulou uma nova teoria econômica, mas mergulhou com objetividade nos elementos que conformam as estruturas econômicas, políticas e sociais.

“A concentração da propriedade de terra, que muitos economistas deixam de fora, é um elemento que está na equação dele. Então, de maneira objetiva, ele cria categorias para tentar entender o funcionamento dessa economia e dessa sociedade subdesenvolvida”, pontua.

A obra, complementada em 1961 com a publicação de “Desenvolvimento e Subdesenvolvimento”, aponta caminhos e possibilidades de intervenção racional do Estado no processo de desenvolvimento econômico, sobretudo a partir de reformas estruturais. O que estava em jogo não era uma transformação do sistema produtivo por completo, mas um redirecionamento da política econômica e social do país que levasse em conta o desenvolvimento social.

Da teoria à prática

Celso Furtado foi diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), no governo Kubitschek, e ministro do Planejamento no governo João Goulart. Foi nesse período que formulou o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, lançado em 1962. O plano estabelecia as famosas reformas de base, agrária, tributária e social, como uma condição fundamental para superar o subdesenvolvimento.

Mesmo não sendo uma transformação do sistema produtivo, o plano foi condenado pelas elites e chegou a ser considerado um dos motivadores do golpe civil-militar de 1964. Furtado, que não era socialista, estava na lista dos cem primeiros cidadãos perseguidos após o golpe no Brasil, como conta Juliane Furno.

“A própria ditadura militar identificava o quanto as ideias do Celso Furtado eram perigosas, do ponto de vista da desestruturação do status quo e dos sistemas de privilégios econômicos”, lembra.

Para Barbosa, essa situação evidencia que Furtado era um pensador nacionalista e estruturalista contra-hegemônico. Mesmo com a derrota desse projeto, fundamentado na obra “A pré-revolução brasileira”, o intelectual continuou se adaptando e perseguindo a “missão de acabar com o subdesenvolvimento do país”, como define o professor.

“O objetivo dele é, a partir do pensamento, interferir no processo de construção da nação. A todo momento, ele está revendo sua posição e as engrenagens mais amplas de funcionamento do desenvolvimento do Brasil, do mundo, da América Latina e do nordeste”.

No exílio até a Anistia em 1979, Furtado se dedicou a atividades de ensino e pesquisa nas universidades de Yale, Harvard e Columbia, nos Estados Unidos, de Cambridge, na Inglaterra, e em Sorbonne, na França, e à continuidade das pesquisas sobre o subdesenvolvimento do país.

“Esse é um dos ‘segredos’ do Furtado: ele está sempre formulando categorias e interpretando processos para interferir em condições que estão sendo definidas naquele mesmo momento. Isso, por vezes, o levava a refazer toda sua estrutura argumentativa”, ressalta Barbosa.

É o que o economista fez, por exemplo, em “Dialética do Desenvolvimento”. Após o golpe, Furtado se dá conta de que o Estado “não pode tudo”, que certos acordos de classe podem não ser favoráveis para o desenvolvimento nacional que propunha. Em “O mito do desenvolvimento econômico”, em 1974, ele constata que a industrialização na periferia não leva à formação de sistemas econômicos nacionais, como havia imaginado antes.

De volta ao Brasil, nos anos derradeiros da ditadura, Furtado filiou-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), em 1981. Em seguida, participou da Comissão do Plano de Ação do governo Tancredo Neves, em 1985, e foi nomeado Embaixador do Brasil junto à Comunidade Econômica Europeia, mudando-se para Bruxelas. De 1986 a 1988, foi ministro da Cultura do governo Sarney, quando criou a primeira legislação de incentivos fiscais à cultura.

Ideia viva

Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1997, Furtado permanece relevante na academia, na política e no debate público.

Após seu falecimento, em 2004, foi inaugurado o Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, proposta encabeçada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A instituição foi responsável pela criação da Biblioteca Celso Furtado, que abriga 7.542 livros que pertenceram ao autor, e também pela publicação semestral “Cadernos do Desenvolvimento”.

“O diagnóstico que ele fez dos problemas brasileiros, da característica do subdesenvolvimento, do papel dessas reformas estruturais, foi muito importante”, enaltece Furno.

De acordo com Barbosa, esse legado faz com que Celso Furtado não seja visto como um autor do passado, mas um intelectual “sempre presente nas nossas tentativas de encontrar um projeto de Brasil”.

“Ele nos oferece esse método histórico estrutural, de acompanhar mudanças econômicas, sociais e políticas ao mesmo tempo em que se olha para o que acontece lá fora. Porque a gente não tem plena autonomia, por conta da dependência e do subdesenvolvimento”, acrescenta o professor do IEB.

O método de Furtado abre caminhos para que gerações de pesquisadores, intelectuais, militantes de movimentos populares construam uma nova utopia. Como escreveu o autor na obra “Em busca de um novo modelo”, “a primeira condição para libertar-se do subdesenvolvimento é escapar da obsessão daqueles que se auto intitulam desenvolvidos, é assumir a própria identidade na crise de civilização que vivemos. Somente a confiança em nós mesmos poderá nos restituir a esperança”.