O GADO HUMANO não é coisa de índio
Ivan Marinho de Barros Filho*
Em 30.07.2020
O quadro de fragmentação reflexiva, instalado pela especificação extrema do conhecimento, há muito que é objeto de preocupação e até pessimismo de alguns intelectuais como, por exemplo, Aldous Huxley e George Orwell, expressos, respectivamente nos livros Admirável Mundo Novo e 1984. Ambos apontavam para um mundo dominado pelo poder totalitário, fundados, aparentemente, não na força, mas nos condicionamentos psico-filosóficos. Huxley combinou a repetição da informação e as drogas e Orwell a redução do vocabulário a partir da Novilíngua, onde cada vez mais se reduzia a multiplicidade dos sinônimos com o objetivo de empobrecer a fala, empobrecer o pensamento, empobrecer a ação. Dois mundos apáticos, nutridos pela razão imediata, hedônica. Não quero, com esta reportação, condenar a metodologia científica à condição de culpada, porém, comungar a tensão de um olhar comum, empiricamente formado, sobre a realidade aparente das coisas.
Por outro lado, quando pensamos no Fabiano, personagem principal de Vidas Secas, do Graciliano Ramos, que pela pobreza de seu vocabulário não conseguia tomar consciência da exploração a que era submetido e que a intuição que tinha daquela situação não era suficiente para ajudá-lo a reagir, então a “póica troce o rabo” perante o vislumbre da importância do conhecimento científico.
De certo que nossa apreensão do mundo nem sempre é tematizada, “sendo inicialmente pré-reflexiva”, no cotidiano de nossas vidas, visto que a abordagem que dele fazemos se encontra, primeiramente, no nível do vivido que, a partir de um esforço surgido do questionamento faz com que a razão elabore um trabalho de conceituação “que vai se tornando cada vez mais complexo, geral e abstrato” (Aranha e Martins. 1986).
Algumas sociedades, ainda hoje, existem sem o conhecimento científico, a partir de um manancial ametódico e assistemático, chamado de conhecimento vulgar ou espontâneo. Chama-se também de empírico este tipo de conhecimento, por ser uma experiência adquirida sem nenhum planejamento rigoroso ou por indução consciente. É absorvido espontaneamente, sem questionar-se.
Fora de nosso plano racionalista poderia-nos parecer impossível a harmonia numa sociedade primitiva, sem escrita, sem ciência, sem avanços tecnológicos sucessivos, mas não é. Roque de Barros Laraya, antropólogo e professor emérito da UnB, diz que o “ritmo indígena decorre do fato de que a sociedade está satisfeita com muitas de suas respostas ao meio e que são resolvidas por suas soluções tradicionais” (Laraya, 2004). A harmonia social pode ser constatada no baixo nível de criminalidade, nas ações lúdicas coletivas e até na relação entre gerações. No documentário Xingu, apresentado pela Rede Globo, mostra-se uma cena em que um jornalista, incomodado com a paciência de um velho índio que reinicia seu artesanato depois de tê-lo, várias vezes, destruído por um curumim, pergunta por que ele permite aquilo, ao que, sem entender a indagação, responde: “é uma criança”.
É curioso, também, perceber o tempo e o tom da fala indígena. Soa doce e sem pressa como uma antecipação do Éden.
OLHOS DE ÍNDIO
Isso de olhar
Um sopro de folhas
Que caem rítmicas
e frenéticas de uma árvore
ou outras
que brincam com o vento
de serem bandeirolas,
tira-me o tempo
de olhar pras horas.
Se por um lado a prática científica ou civilizada, nos põe fora da possibilidade de contemplação e integração mais totalizante com o entorno, por outro nos abre as portas da compreensão dos fenômenos naturais e sociais, nos proporcionando uma lucidez muitas vezes mágica que, quanto mais se expande e se inter-relaciona, mais nos aproxima de nós mesmos.
Preocupada com a regularidade que existe em determinados fatos, a ciência tende a recortar parte da realidade a fim de demonstrar alguma generalidade de efeitos. Com isso, o cientista, de certo ponto de vista, reduz o conhecimento para ampliá-lo particularmente, removendo toda experiência individual, como “recordações, emoções, sentimentos estéticos despertados pelas disposições de átomos, as cores e os hábitos de pássaros, ou a imensidão da via Láctea” (Marleau-Ponty, apud Aranha e Martins).
Para afirmar-se enquanto linguagem, a ciência necessita de rigor, de modo que suas definições evitem ambigüidades. Mais precisa se torna quando usa da matemática para transformar qualidades em quantidades. Outro ponto fundamental do desenvolvimento da ciência é que permite a previsão de fenômenos, lhe provendo da capacidade de transformar a natureza e a sociedade. “A ambigüidade desse poder, pode estar a serviço do homem ou contra ele, deve provocar reflexões de caráter moral, a fim de que sejam questionados os fins a que se destinam os meios utilizados pelo homem: Se servem ao crescimento espiritual ou se o degradam; se servem a liberdade ou as formas de dominação” (Aranha e Martins. 1986).
Como “elimina a maior parte da aparência sensual e estética da natureza”, a ciência caracteriza-se como uma ação eminentemente mental do ser humano. No entanto, essa característica mental não se circunscreve particularmente sobre os cientistas. Nos tradeoffs histórico-existenciais a espécie humana, quase sempre, optou pelos caminhos mais seguros, mais pragmáticos, as vezes deixando pra trás valores espirituais edificantes de caráter mais associativista e, portanto, de mais confiança mútua.
VERSOS ÍNTIMOS
(Augusto dos Anjos)
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Visto no poder sobre outros homens, “o homem” se “fortaleceu” através da linguagem e dos mitos. Deparado com interpretações racionalistas, como as concomitantes do século XVI, Utopia (de Thomas Morus) e o Elogio da Loucura (de Erasmo de Roterdã), respondeu pragmaticamente, com o Príncipe (de Nicolau Maquiavel). Adaptando, posteriormente, a teorias do condicionamento, fundadas a partir de experiências com animais (Teoria do Condicionamento, pelo russo Pavlov) e levada ao extremo pelos norte-americanos através das teorias educacionais de Skinner.
No embate entre mente e espírito, a primeira enquanto pragmaticidade e sobrevivência individuais e a segunda enquanto reunião de sentidos e valores coletivos, parece esta ter ficado em desvantagem. Diga-se, a bem desta conclusão, que o secretário de educação de Nova Iorque, Eric Nadelstern, foi responsável pela implantação de uma pedagogia técnico-administrativa, baseada na competição e na recompensa por mérito, ou seja, um retorno declaradamente aberto à teoria dos estímulos negativos e positivos de Skinner. Outro exemplo de opção pelo aspecto condicionador da personalidade humana pode-se ter na “Super-Nanni” que, baseada em resultado aparentes, fomente a idéia de educação através da disciplina condicionadora do estímulo-resposta.
No entanto, é muito mais remota a luta entre o mental e o espiritual. Podemos vislumbrá-la metaforicamente, nos mitos de Dioniso e Apolo, extremos simbólicos da queda-livre existencial e da construção sacrificada da própria vida.
O pensamento cínico, semente do pensamento anárquico, também punha em evidência as amarras mentais que condicionavam ou eram condicionadas, as relações de poder. Houve-se dizer a seguinte “história”: “Diógenes ( aquele que andava dentro de um baú, segurando uma lanterna a procura de homens) estava deitado nu, à beira-mar, quando Alexandre, montado em seu cavalo, perguntou o que ele queria para revelar seus pensamentos. Perguntou e ofereceu prêmios para isto. Quando viu que não conseguia resposta, ofereceu metade de seu reino, perguntando a Diógenes o que queria… Diógenes abriu um dos olhos e falou: “quero que você se afaste com seu cavalo, pois estão impedindo a passagem do sol”.
Várias insurgências existiram e existem contra a absolutização mental do homem. A doutrina budista apregoa que “aprender o caminho de Buda, é aprender sobre si mesmo e que, aprender sobre si mesmo é esquecer de si mesmo”. Nietzsche, filósofo alemão, dizia que só acreditaria num Deus que dançasse. Edgar Morin, filósofo francês contemporâneo, crente que o homem se adapta ao que produz, fazendo uma análise do fenômeno da digitalização e virtualização do mundo, considera “que ‘vida e não vida’ é uma questão de organização, e que o fundamental é preservar a capacidade do homem de alcançar o estado ‘poético’” :
“- Viver poeticamente é o cerne da realidade e da verdade humana – declarou – e o estado poético, num certo sentido, já é virtual, ou surreal, porque é mais do que real. Quando somos capazes de atos não gratuitos, de atos que modificam a percepção das coisas, afirmamos nossa humanidade contra a trivialidade das máquinas. O estado de paixão nos liberta do determinismo. A civilização contemporânea separou a realidade do sonho, que antigamente era visto como algo premonitório. Foi por isso que Rimbaud escreveu que ‘a verdadeira vida está ausente’, como se existisse uma realidade sonambúlica e uma outra realidade, como ocorre em Matrix. E a melhor forma de resistência é fazer os dois mundos interagirem.
REPOETAR-SE
Aos pés da tela somos jogados
E de joelhos soltos ao chão
Sem encontrar naquela imagem
A semelhança que nos cobrava
Olhos nos olhos, outros nos víamos
Mas nos queriam tal qual a si.
Quando entre o visto e o que não viam
Desce encantada, somente vôo
De branco ou nua, vindo ao encontro
Para amparar-nos em suas coxas
Só seu buquê justificava
A eternidade daquele instante.
Serenamente fecham-se os olhos
E em seu útero nós retornamos.
Talvez aquela “unidade psíquica da humanidade”, defendida por Adolf Bastiam (1826 – 1905) e reiterada por Taylor, que reafirmava a igualdade da espécie humana, baseado na comparação de raças cultivadas em regiões geográficas díspares, mas com mesmo grau de civilização. A cerca desta unidade Edgar Morin diz que “hoje o processo de planetarização é objetivo e subjetivo. Objetivamente, percebemos que tudo à nossa volta foi globalizado. Subjetivamente, cada indivíduo recebe ‘influxos do eu’, via rede, de todo planeta…”.
Mas essa incorporação mental do homem, está para além do civilizado que somatiza neuroses, conforme a teoria reichiana, encontra-se nas culturas primitivas, como nos relatam em diversos estudos os antropólogos. Considerando que a fé é uma atitude, ou condição, eminentemente mental do ser humano, os exemplos de mortes por conseqüência de visões, como em relatos de Darcy Ribeiro sobre o povo Kaapor (Tupi do Maranhão), que ao vir um ente já morto pelas florestas, morria depois de dois dias, mas que, se desvirtuados da ilusão por um placebo administrado pelos brancos, superavam aquele determinismo cultural.
Se no século XVI Erasmo de Roterdã sugeria que todos os jovens até 16 anos deviam ter familiaridade com os clássicos literários, que lhes daria suporte espiritual, hoje Eric Nadelstern postula a competição de notas na caderneta escolar como medida de eficiência para ocupação de espaço no mercado. Se nos referenciamos nas avaliações feitas em vestibulares, logo concluiremos que, em detrimento da percepção geral das coisas, privilegia-se componentes menos complexos da mente humana, como a memória.
Prazer
Da pura percepção
Os sentidos
Sejam a crítica
Da razão
Paulo Leminski.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
Laraia, Roque de Barros.
2004 – Cultura, um conceito antropológico. Jorge Zahar Editor.
Aranha, Maria Lúcia de Arruda & Martins, Maria Helena Pires.
1991 – Filosofando. Editora moderna.
Paulo Leminski.
1987 – Distraídos Venceremos. Editora Brasiliense.
Mankiw, N. Gregory.
1998 – Introdução à Economia. Editora Campus.
Pinho, Diva Benevides & Vasconcelos, Marco Antônio S. (orgs.).
2007 – Manual de Economia. Editora Saraiva.
Revista Continente Multicultural.
31/07/2003 – Comp. Editora de Pernambuco.
Revista Veja.
21/11/2007 – Editora Abril.
*Ivan Marinho de Barros Filho é professor, especialista em Economia da Cultura.
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