Os caminhos e multiversos da música preta e periférica contra os dragões da maldade
Mário Gouveia Júnior*
Em 31.07.2020
Após revisitar a filosofia interdiscursiva do álbum “Alucinação”, do Belchior, e as provocações tecnológicas do Black Mirror, a proposta é buscar um contraponto entre o ontem e o hoje no universo (ou multiversos?) da música brasileira. Será que antigamente a música e os seus conteúdos também já foram melhores? No tempo atual, temos sido para as gerações futuras dignos bons ancestrais como os que tivemos? Qual o legado de nosso tempo para o porvir neste segmento?
Em algum momento da vida de um historiador, aquele que sabe que não se narra sem viver nem se vive sem narrar, vem à tona a necessidade de falar de tempos idos; não para contemplar o passado pelo passado, em si, mas com o objetivo de identificar origens, invenções, padrões, permanências e rupturas que acabam por influenciar (e conversar com) o tempo presente. Todos estes, que partilham da paixão pela História como um Marc Bloch ou como um Paul Veyne, sabem e concordam com este último que os “clássicos nos ensinaram a fazer perguntas”. Por isso é tão importante consultá-los, ou reconsultá-los, já dissera Ítalo Calvino. Do mesmo modo, todos estes historiadores, a esta altura da caminhada da humanidade, devem estar convencidos da consolidação da assertiva de Marx de que “a história só se repete como farsa ou como tragédia”.
Isto posto, se não se pode reconstituir integralmente o passado, restaria idealizá-lo? Desejar uma viagem no tempo semelhante à de Woody Allen e seu “Meia Noite em Paris”? No filme, o protagonista, um escritor idealista, depara-se com uma improvável viagem no tempo à Cidade Luz dos anos 1920, época vista por ele como o melhor tempo para se viver. Chega até a conversar com Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, seus ídolos. Os meandros da trama o fazem entender que, independente da época em que se viva, sempre haverá saudosistas, a olhar para trás e desejar viver “em algum lugar do passado”.
Nem precisa mergulhar numa trama de romance fantástico para chegar a essa conclusão; podemos facilmente perceber que sempre haverá espaço para os retornos das modas e a valorização do vintage, por entre vitrolas, vinis e outros artefatos ou mentefatos. Assim, mais ou menos, a cada vinte anos as sociedades urbano-industrial-complexas parecem se voltar para hábitos, modas e músicas que fizeram sucesso nas duas décadas anteriores; o que explica algumas tendências, inclusive, da moda atual de retorno aos anos 1990, ou a explosão de nostalgia que os anos 2000 vivenciaram em relação aos anos 1980.
Então tudo começa a fazer sentido! O mesmo autor que anteriormente criticou a avidez desta geração pela novidade agora se assume um melancólico que sente “saudade do que não vivemos”? Em parte. Há algo em mim que sente verdadeiro fascínio pela segunda metade do breve, e pós-estruturalista, século XX. Por outro lado, também tenho ânsia por ver novos tempos, sobretudo novos tempos com menos padrões opressores, menos relógios, menos competição e mais espaço para a colaboratividade e a afetividade nas relações.
Como bom geminiano, sei que posso conviver – nem sempre harmonicamente – com minhas contradições. “Quem já? Quem nunca?”. Usar memes aclamados por redes sociais, e devidamente aspeados, para falar de passado é algo que para mim soa como absolutamente normal, desde que meu leitor consiga alcançar a referência. Conseguiram? Bom! Até porque o meme é um produto popularizado hoje em dia pela Internet, mas é fenômeno muito anterior a ela. Basta que o leitor consulte, por exemplo, a plataforma de streaming que apresenta novelas dos anos 1980/90, e, caso não seja dessa época, dirija-se aos que foram/são contemporâneos e pergunte quantas frases e jargões proferidos por personagens caíram na boca do povo. Muitas são ditas até hoje! Merece um ensaio todinho delas, as excelentes novelas Roque Santeiro e Tieta. Por hora, vamos falar de música! Quem tiver ouvidos para sentir, que se expresse!
Se por um lado, um álbum publicado há mais de 40 anos, como “Alucinação”, entre outros tantos e tão geniais, pode ser tão atual e ainda ter tanto a dizer, por outro, justifica-se afirmar que quando sintonizamos a maioria das estações de rádio Brasil afora, muito do que se ouve parece descartável? Nesse sentido, o que viria a ser uma boa música? Ela precisa, necessariamente, atravessar tempos, passar mensagens universais, dialogar com bandeiras ideológicas? Ou o objetivo da música seria para mero entretenimento, e, portanto, dispensaria tais atributos? Isso acabaria por evidenciar um preciosismo arrogante por parte de todos aqueles que não veem sentido nas músicas de sucesso de hoje em dia?
Reforça essa polêmica a recente entrevista concedida por Milton Nascimento à jornalista Mônica Bérgamo, na qual o compositor de “Clube da Esquina n. 2” se lamentou pela superficialidade da música brasileira que toca nas rádios e nas plataformas streaming, cujo mote do momento, que faz sucesso, gira em torno de bebida e traição. E olhe que Milton, muito gentilmente, nem chegou a mencionar certos agudos de qualidade questionável, que, há alguns anos, afligem ouvidos mais sensíveis e um pouco mais exigentes. Mas tudo isso segue na linha tênue do gosto, este totalmente subjetivo. Será?
Deve-se fazer a ressalva que Milton, na mesma entrevista, teria elogiado também alguns cantores e compositores da nova geração, sem que o seu discurso deva ser entendido como agressão generalizada àqueles que seguem com as responsabilidades de conferir vida longa à música brasileira, detentora de um selo de qualidade tipo exportação desde os tempos da Bossa Nova; lá se vão quase sete décadas.
Se é verdade que a música pode ser pensada como uma complexa combinação entre silêncios, sons e performances, dotada de fins estéticos, que tem o objetivo de alcançar percepções, ações e memórias organizadas, gerando prazer aos ouvintes, cabe considerar que este entendimento pode ser completamente relativizado com base em diferentes prismas de espaço e tempo. Isso porque, a classificação do que vem a ser música varia entre culturas e a cada momento histórico, só para começo de conversa.
Então, será mesmo que têm razão aqueles que, assim como o jornalista memetizado Carlos Nascimento, afirmam que “já fomos mais inteligentes”? Ou os que concordam com a afirmação do consagrado cantor brasileiro, cuja voz é ainda hoje das mais belas do país? A princípio, todas as generalizações correm dois grandes riscos; o da injustiça e o da imprecisão.
Tanto é impreciso dizer que a música brasileira é refém de refrões monossilábicos, letras de “sofrência” e passinhos sexualizantes, restringindo-se a isso, quanto é injusto com uma nova geração de compositores e intérpretes do quilate de Baco Exu do Blues, Bia Ferreira, Criolo, Ellen Oléria, Emicida, Luana Hansen e Russo Passapusso, entre outros. Se “não existe amor em SP”, existe valor e legitimidade nos versos e discursos destes intérpretes e compositores, cuja identidade sonora se alimenta de Axé, Blues, Dub, Hip Hop, Jazz, MPB, Rap, Reggae, Samba, Samba-Rap, Soul, Soundsystem. Um multiverso de múltiplos versos. Uma nova antropofagia, que, assim como o nosso manguebeat, certamente, contagiaria os modernistas paulistanos de cem anos atrás; de Bandeira a Oswald, passando por Pagu, Clarice, Rachel e Guimarães Rosa.
Se assim o pudermos chamar, este é um movimento, não de redescoberta ou reinterpretação do Brasil, mas de construção de novas narrativas do cotidiano, da realidade, de múltiplos brasis vistos de baixo. Algo feito por periféricos e não mais para periféricos. Existe um forte posicionamento político-social nestas narrativas, permeadas que são pela efervescência cultural da periferia, que também se dirige aos grandes centros, mas fundamentalmente a um público que carece dessas mensagens, que, por vezes, não encontra ecos em outros lugares. Enaltecer essa tendência é falar de representatividade.
Evidenciam a possibilidade de trazer reflexões e educar por meio de letras, que, de tão grandes e profundas, quase não cabem nas melodias. Transborda o discurso antirracista, antimachista, anti-homofóbico, antitransfóbico. Transbordam as utopias possíveis de que a educação, quando se encontra com o amor, o esperançar e a empatia, transformam as pessoas.
“As pessoas não são más, elas só estão perdidas; ainda há tempo” é uma das reflexões provenientes desses pensadores contemporâneos, que, como Criolo, vieram pra incomodar, cutucar, confundir, expressar-se. São frases que precisam ser lidas, e sentidas, com calma. “Por isso, fique atento, irmão, que nem sempre o caminho mais curto será o melhor; há tanto fio de navalha e precipício” nesses perenes bons combates contra os tantos dragões da maldade. Mas não é possível sentar e chorar pela “memória dos muitos heróis que morreram de overdose de violência, sob coturnos dos arautos da decência”; é preciso seguir sem medo, “então levanta e anda, vai…”, ensina Emicida.
Emicida, o MC “homicida”, que “matava” todo mundo nas batalhas de Hip Hop, pensando e rimando a jato, que criou para seu nome o precioso acrônimo E.M.I.C.I.D.A (Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades Domino a Arte), quando fala de caminhos e caminhares, defende a necessidade de se perder e se encontrar a cada vento que soprar. Constrói poema e rima com as coisas reais; tem a propriedade de quem faz o que diz e diz o que faz; e faz o próprio caminho, consciente de que o caminho também lhe faz. Emicida, entre muitas outras influências, me soa como Paulo Freire e António Machado na veia!
É Bia Ferreira que reforça que “cota não é esmola” e que ser mulher é processo sociocultural e histórico, mais de resistência que resiliência, e não genético. “Cê tem a liberdade pra ser quem você quiser”. Ela, que contribui para que a voz preta e periférica jamais seja calada, que faz menção a Zumbi e Dandara, alerta para o nascimento de milhares de vozes a cada vez que uma silenciar. Luana Hansen celebra esse (re)nascimento, e vida longa, às muitas flores desobedientes, que enquanto forem regadas, as coisas serão diferentes. Ellen Oléria tem sangue e pulmões pra gritar pela quebra dos padrões, pela saída dos porões, por poções mágicas de amor. Olha a representatividade mais uma vez na timeline.
Russo Passapusso quer saber se essas poções mágicas saram as feridas feitas pelas máquinas de lucros e de loucos, que não nos deixam respirar. Tá mesmo a fim de contra-atacar bozos e trumps; porque nem precisa de bola de cristal para saber que é preciso reescrever a história que privilegiou a narrativa dos vencedores “desde que a pedra lascada fazia o papel da bala de metal”. Criolo, do seu canto, já pediu um gole de vida, enquanto Baco Exu do Blues tá afim de beber vinho, quebrar taças, amar e dividir a maçã. Mas vai muito além e mais profundo que o fundo do copo, e, por entre Rimbaud, Nina Simone e girassóis de Van Gogh, considera que se “o mundo é fruto da nossa imaginação, somos deuses ou a sua criação?” Mas se “humanos não matam deuses” porque tem tanto preto sendo morto?
Tudo o que essa geração (que cresceu nos aos 1980/90, quando Belchior já se imortalizara) tem produzido não caberia neste ensaio, como também não cabe dizer que não há inteligência na música brasileira. Numa realidade que Chico Science, ainda nos anos 90, denunciava que “computadores fazem arte e artistas fazem dinheiro”, haverá um amplo mercado para pretos que rimam e questionam o sistema e opressões estruturais e perversas? “Organização faz o tubarão temer as tilápias”, cravou Emicida. Eis um caminho possível.
“Organização faz o tubarão temer as tilápias”.
Emicida.
Bons ancestrais nem sempre são contemporâneos de seu sucesso pela descoberta de suas contribuições. Este, aliás, nunca foi o objetivo. Ser bom ancestral é contribuir para que as gerações do provir sejam melhores; é plantar uma árvore, cujos primeiros frutos alimentarão outros e não a si mesmo ou ao seu ego. A História que estamos dispostos a escrever jamais apagará as importantes contribuições destes homens e mulheres que, com canetas e microfones, denunciam este mundo perverso, mas também anunciam possibilidades para o novo mundo, que seguiremos desejando, na medida do impossível, enquanto formos (e sempre seremos) reencarnações de deuses.
Cabe a máxima de Wilson das Neves: “Só morre quem não presta”, aquele que deixa um legado, que presta, que tem utilidade, que deixa reflexões, não será esquecido. A inteligência vive, sim, na música brasileira, mora na filosofia e se alimenta das lutas por equidades, mas não costuma visitar com frequência o circuito comercial musical. É preciso superar o broadcasting globalizante; a Internet oferece outras possibilidades.
*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.
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Foto destaque: bocadaforte.com.br