Quase 100 mil…

Por

Mirtes Cordeiro*

03.08.2020

Quase cem mil vidas perdidas.

Acompanhamos incrédulos o que acontece no Brasil com a pandemia do novo coronavírus. Todos os dias, no início da noite, nos postamos em frente à televisão para conhecer a evolução dos dados sobre a doença, na esperança de que haja uma queda na curva, que se mantém num patamar de mais de 1.000 mortes por dia há dez semanas, aproximadamente.

A pandemia que surgiu na China apanhou a população mundial de surpresa e no Brasil, após o carnaval, havia uma expectativa acrescida de incredulidade. Por aqui a saúde do brasileiro já vem padecendo de várias mazelas originadas de vírus como a popular gripe, a dengue e seus derivados zica e chikungunya.

O nosso Sistema Único de Saúde (SUS), embora seja uma conquista da sociedade brasileira e amparo para os pobres, não tem há vários anos recebido a atenção necessária dos governantes para ampliação e manutenção da infraestrutura, além de apoio e valorização dos profissionais da saúde. Essa realidade se expressa nas longas filas para atendimento em emergências hospitalares, serviços de pronto atendimento como as UPAS e as Policlínicas, e nas unidades de atenção básicas, portas de entrada do sistema  e onde se se pratica a política de prevenção intitulada Programa de Saúde da Família.

A política de saúde em nosso país é praticada no formato denominado tripartite, espaço intragovernamental onde ocorre o planejamento, a negociação e a implementação da política de saúde, sob responsabilidade dos governos federal, estadual e municipal, e sob coordenação do governo federal através do Ministério da Saúde. A Constituição determina que estados e distrito federal devem aplicar 12% e municípios 15% de suas receitas na execução dos serviços de saúde pública, enquanto ao governo federal cabe a aplicação de 15% de sua receita corrente líquida atualizada pela inflação. Na verdade, após a emenda 95 ao orçamento federal, os recursos para saúde ficaram mais escassos e ainda são capturados por processos de corrupção pelo país afora de maneira criminosa, Inclusive agora na pandemia.

A Emenda Constitucional (EC) 95 implementada durante o governo de Michel Temer  e mantida pelo governo de Jair Bolsonaro prometeu congelar os recursos do orçamento da União para despesas básicas. Entretanto, como previsto por uma grande parte da sociedade civil, a promessa caiu por terra e, na verdade, os recursos da Saúde estão caindo cada vez mais – a informação é do pesquisador de economia da saúde e consultor do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisco Funcia.

Se em 2019 o governo tivesse aplicado o mesmo patamar que aplicou em 2017, 15% da receita corrente líquida de cada ano, a Saúde teria um orçamento de cerca de R$ 142,8 bilhões em 2019 – e não os R$ 122,6 bilhões aplicados. Ou seja, um encolhimento de R$ 20,19 bilhões nos recursos à saúde da população. (Dados do SUS)

Ao vivenciarmos certa “convivência” com a Covid-19, logo pensamos em compreender as circunstâncias em que aconteceu a Gripe Espanhola no Brasil (primeira metade do século 20), até então desconhecida para todos.

No dia 5 de junho de 2020 o número de mortes por Covid-19 no Brasil chegou a mais de 35 mil, ultrapassando a quantidade de óbitos por Gripe Espanhola, quando a doença atingiu o país em 1918 (a população nacional da época era de aproximadamente 30 milhões de pessoas).  Entre as vítimas estava o presidente da República, Artur Bernardes, que chegou a ser reeleito  em 1918, mas contraiu a Gripe Espanhola antes de tomar posse e foi substituído pelo vice-presidente Delfim Moreira que, por sua vez, se tornou o primeiro presidente interino do Brasil. A Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que a Grande Gripe tenha sido a pandemia mais mortal da história: foram  50 milhões de óbitos entre 1918 e 1920 no mundo inteiro.

Mortos pela cCvid-19, no Brasil, enquanto escrevo estas linhas com muito pesar, mais de 90.000 pessoas (homens, mulheres, jovens, crianças). Acredita-se, no entanto,  ser esse número maior que o anunciado, dado a inoperância do Ministério da Saúde e a falta de atendimento adequado e desconhecido pelas unidades de saúde públicas. Os canais de televisão mostram com frequência o desespero de parentes querendo internar ou enterrar os seus parentes. Cenas semelhantes só conhecíamos através dos livros ‘A Peste de Camus‘ e ‘Amor nos Tempos do Cólera’, de Gabriel Garcia Marquez. Cadáveres guardados em containers aguardando a abertura das valas comuns para serem enterrados. Em entrevista  publicada na CNN o prefeito de Manaus admitiu que é possível que famílias tenham enterrado seus parentes em áreas rurais próximas aos quintais de suas moradias.

Um século após a gripe espanhola o nosso país ainda guarda muitas semelhanças ao ser surpreendido pela Covid-19. Há 100 anos o Recife parou. As escolas cancelaram as aulas; os clubes derrubaram a agenda de programações; as igrejas suspenderam as missas. “Nas ruas, não se via quase ninguém. Quem não estava agonizando em casa ou chorando as perdas repentinas, estava com medo… as receitas de tratamentos infalíveis se espalharam por aí durante a Gripe Espanhola… nos jornais, as páginas eram tomadas por cartas de leitores que indicavam pitadas de tabaco, balas de ervas e tônicos como remédios para a doença. Além disso, outra recomendação era queimar alfazema ou incenso para “limpar o ar” — tudo sem comprovação científica… um tratamento que se tornou particularmente popular quando a Gripe Espanhola atingiu o Brasil foi a ingestão de sal de quinino, um remédio então usado no tratamento da malária. Mesmo sem comprovação científica de sua eficácia, a substância sumiu das prateleiras e, em certo ponto, passou a ser distribuída para a população.” (revista galileu)

A recomendação naquela época era fundamentalmente o distanciamento social e ainda não havia a penicilina.

Relatam os historiadores que as autoridades brasileiras da época demoraram a agir e negligenciaram o vírus, não acreditaram nas evidencias científicas apresentadas pela Academia Nacional de Medicina à época. O país ainda não contava com a organização da política de Saúde, o que acontecia também com a Educação.

O medo e o susto provocados pela pandemia da Covid-19 foram, de certa forma, aplacados pelo uso de medicamentos para tratamento de outras doenças contagiosas como as antibióticos, os antinflamatórios, os corticoóides e outros. No entanto o SUS foi estrangulado pela falta de recursos e pelo despreparo já denunciado para o atendimento às doenças comuns. Leitos insuficientes e ausência de UTIs, deficiência de pessoal, falta de instrumentos e medicação no meio de  uma crise política, e a  ausência do Ministério da Saúde, ora conduzido por pessoas que não manifestam competência para coordenar as ações em substituição às equipes de trabalho já existentes  e formadas no dia a dia na defesa da saúde, na construção do SUS e no trato com as especialidades da área.

A verdade é que o presidente da República elegeu a cloroquina e a hidroxicloriquina como os elementos impulsionadores da crise política, transformando-se no propagandista destes medicamentos e angariando aliados políticos.

O presidente não compreende até hoje que o vírus é um elemento tóxico que compromete a vida das pessoas e não pode ser alçado à condição de cabo eleitoral. A vida das pessoas é mais importante que qualquer coisa, e deve ser protegida.

Com isso, a população mais uma vez se viu manipulada entre entre as ervas, os quininos, os lambedores ora representados pela cloroquina e, outra vez, o fetiche do salvador da pátria, desta vez, dos quase mortos.

Quase cem mil…

Quem de nós não toma qualquer meizinha estando em cima de uma cama ou dentro de uma rede, em casa ou numa balsa atravessando o rio, quando oferecida  e dito que a morte se aproxima? Quem de nós, mesmo os mais letrados, tem condições de definir qual o melhor tratamento para o seu estado de saúde sobretudo diante do vírus?

A pandemia escancarou de vez os portões da desigualdade no Brasil em todos os aspectos, que estão além da sobrevivência básica, da necessidade de ter o que comer, onde dormir… daqueles que vieram à tona quando sequer eram visíveis pela sociedade ou pelo poder público, sem registros de nascimento, sem identidades registradas e controladas pelos serviços de segurança, sem CPFs para pagar impostos, e mais que tudo, sem acolhimento nas políticas públicas, sem solidariedade, sem afeto.

Estados e Municípios do Nordeste, região do país onde se concentra a pobreza, corresponsáveis pela política de saúde, saíram na frente e criaram um Comitê Científico para ajudar no enfrentamento ao desconhecido. A ideia é propor medidas articuladas entre estados e municípios da região Nordeste baseadas no conhecimento científico, sob coordenação do neurocientista Miguel Nicolelis e composto por pesquisadores, cientistas, epidemiologistas.

Segundo Nicolelis “a pandemia trouxe à tona a necessidade da ciência ser levada mais a sério pelos governos, pelos gestores e pelas sociedades dos países. Em todos os países onde a ciência foi posta em primeiro plano, ela ajudou demais a combater a pandemia. Por exemplo, na Alemanha, onde os institutos de pesquisa foram chamados a ajudar o governo alemão e desempenharam um papel central, na Coréia do Sul da mesma forma…  todas as aberturas do Brasil foram executadas ainda fora dos parâmetros que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda, então no momento em que isso ocorre, independente do grau da abertura você se expõe ao risco de ter novos casos se desenvolvendo e novos picos aparecendo em diferentes regiões do estado”.

Seguimos apreensivos com a situação. Cresce o debate sobre as mudanças que virão quando o vírus se cansar de contaminar ou quando chegar a vacina. Esperemos que o ser humano siga buscando a resposta feita por vários filósofos; Por quê viemos a terra ou para que estamos aqui?

Em seu livro HOMO DEUS, Noha Harari fala que diariamente a humanidade se indaga, de manhã cedo quando se olha no espelho, sobre o que nos espera hoje e diz que durante milhares de anos a resposta a essa questão não se alterou. As mesmas questões permanecem e três problemas preocupavam as pessoas da China no século XX, da Índia medieval e do antigo Egito. Fome, pestes e guerras. Acrescenta que a maioria das pessoas raramente pensa sobre isso… e mais adiante em seu livro pergunta: “O que vamos fazer conosco?”, ainda se referindo à peste a fome e à guerra.

Seguimos esperando que o governo Central constitucionalmente escolhido pelo povo se dirija às famílias dos quase 100 mil brasileiros que morreram e peça perdão pelo mal feito até agora.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

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Foto destaque: ultimosegundo.ig.com.br