Proibição de ações policiais teria poupado a vida de João Pedro

Por

Jurema Werneck*/Anistia Internacional

Em 03.08.2020

“Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”. Os versos dos MCs Cidinho e Doca ironicamente tornaram-se realidade num contexto de isolamento social e de uma das mais graves crises de saúde do mundo. 

A decisão cautelar do ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal) de suspender as operações policiais nas favelas do Estado do Rio de Janeiro durante a pandemia teve impactos importantes na vida de milhares de brasileiras e brasileiros que vivem nas favelas e periferias do estado do Rio de Janeiro. Uma análise dos primeiros 14 dias desde que essa medida entrou em vigor (5 a 19 de junho) revelou que houve uma redução de 68,3% das operações realizadas em 2020 em relação à média dos anos anteriores, considerando um período de 12 anos, ou seja, de 2007 a 2019. Os dados são do GENI (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense) com base em dados oficiais de ocorrências criminais produzidos pelo ISP-RJ (Instituto de Segurança Pública), dados sobre operações policiais produzidos pelo GENI/UFF e dados sobre tiroteios do Datalab Fogo Cruzado – RJ. O comparativo é referente à média da série histórica produzido desde 2007.

Quando se fala em suspender operações policiais, ou incursões policiais em favelas e periferias, a primeira reação de muitos é o medo de que a criminalidade aumente. Outra pesquisa do GENI/UFF, que será divulgada na segunda-feira, 03 de agosto, mostra exatamente o aposto. Mesmo com a redução das operações policiais não houve aumento de criminalidade. Esta mesma conclusão foi apresentada pela Rede de Observatórios de Segurança Pública, em meados de julho.

É importante refletir sobre quantas vidas poderiam ter sido preservadas se esta medida de suspensão das incursões policiais estivesse em vigor desde o início da pandemia da COVID-19, em março. Sem este tipo de ação policial, o menino João Pedro Mattos Pinto, morto no dia 18 de maio, quando estava brincando na casa de sua tia, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, ainda estaria entre nós. E não teríamos visto a morte, no dia seguinte, de Iago César dos Reis Gonzaga, de 21 anos, na favela de Acari; nem a morte de Rodrigo Cerqueira de 19 anos, no dia 21 de março, durante a distribuição de cestas básicas no Morro da Providência, centro do Rio de Janeiro, quando, em uma semana em maio, 17 vidas foram ceifadas durante incursões policiais em favelas.

O fato é que em determinados territórios, onde a maioria dos habitantes é negra e pobre, o Estado só atua a partir da perspectiva da repressão, por meio de seu braço armado.  São pessoas que têm direito à vida, à saúde, à segurança e ao cuidado por parte do Estado. Onde estão as políticas públicas que garantem os direitos para os cerca de 1,3 milhão de habitantes, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que vivem em favelas e periferias do Rio de Janeiro? Quando essa parcela considerável da população estará incluída numa perspectiva de direitos? Quando água, saneamento básico, luz, moradia adequada, saúde, assistência social, trabalho digno e transporte adequado será uma realidade nesses territórios?

Desde o começo da pandemia da COVID-19 até agora não houve um plano específico de enfrentamento à crise que vivemos, desde o ponto de vista de ação de Estado, direcionada a moradores e moradoras das mais de 760 favelas da cidade do Rio de Janeiro. Menos ainda para aquelas que residem na Baixada Fluminense e em outras cidades da Região Metropolitana.  Todas as ações que chegaram a esses territórios são resultado da mobilização de movimentos sociais, organizações de direitos humanos, que buscaram apoio em moradores, em parceiros e em algumas empresas. Mas, é importante lembrar que ações de solidariedade, ainda que fundamentais neste momento, não são políticas públicas. O Estado tem deveres com essa população e esses deveres não são apenas aplicáveis do ponto de vista da repressão. A população das favelas quer andar tranquilamente onde nascem, crescem e onde fincam suas raízes.

As graves violações de direitos humanos resultantes da política de segurança pública apoiada em ações de confrontos armados atualmente empregada pelo Estado do Rio de Janeiro afetam de maneira direta o direito à vida.

Um resultado visível da decisão judicial foi uma redução impressionante nos índices de letalidade policial, ou seja, com a redução das operações policiais nas favelas houve uma redução dramática nas mortes. Os dados oficiais demonstram que entre 5 (data da decisão) e 19 de junho houve 75,5% menos mortes pelas mãos das forças de segurança em comparação com a média das mortes no mesmo período entre 2007 e 2019.

É preciso uma revisão urgente da necessidade e dos critérios para as operações policiais. É preciso que avaliações de eficácia e eficiência sejam feitas baseadas em vidas preservadas. É preciso que moradores de favelas e periferias recebam do Estado tudo aquilo que o Estado tem a obrigação de garantir e, entre tudo, se destaca o dever de proteger a vida de todas e todos.

A afirmação, gritada em alto e bom som pelas ruas das cidades do país e do mundo, de que vidas negras importam, que vidas na favela importam, aponta um imperativo político e ético que deve ser traduzido em ação por parte do Estado. Queremos ver jovens negros vivos. Queremos ver toda a cidade, e não apenas uma parte dela, cuidada, protegida, respeitada e com seus direitos garantidos. Este é o dever de todas as autoridades públicas, sem exceção. A favela quer viver e ser feliz como todo mundo, quer se proteger e enfrentar os desafios que esta pandemia traz, sem ter que temer a presença da polícia, sem ter que entrar com ações no judiciário para poder garantir seu direito de viver.

*Jurema Werneck é diretora executiva da Anistia Internacional Brasil.

Artigo publicado originalmente em 02/08/2020 no UOL.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.