O que não morre e o que está vivo

Por

Ivan Marinho de Barros Filho*

Em 05.08.2020

Tem uma música do Zé Geraldo que diz: “… tudo isso acontecendo e eu aqui na praça, dando milho aos pombos…”. Pois é! Não sou afeito à moda nem ao cotidiano cíclico como, por exemplo, o da corrupção estatal, que dissimula a privada, ou mesmo sociocultural de povos avessos à consciência republicana, da responsabilidade pública. Por isso, em tempo de reclusão, sem Acorda Povo, prefiro enveredar pelos caminhos oníricos da imaginação criadora, nem que para isso tenha que arriscar um assunto “fora de voga” na cultura brasileira: as artes plásticas.

No final do século XIX, sob o impacto da revolução industrial e o advento da câmera fotográfica, criou-se um clima de perplexidade muito semelhante ao que vivemos hoje perante a tecnologia da informação: a informática. Naqueles idos em que a pintura tinha por motivo a reprodução da realidade, mesmo quando imaginada (o paraíso, o inferno, o purgatório, os santos, deuses, nobres, etc.), a fotografia pôs em xeque a produção plástica da época. O que fazer diante de tanta perfeição? Graças à eterna mutação e as infinitas possibilidades sugeridas pela inquietude humana, pari passu  com o desenvolvimento tecnológico, que impunha a superação dos limites da linguagem, o homem mostrou mais uma vez que era maior que o momento, que era capaz de transcendê-lo descartando sobre a mesa a carta da vida, insuplantável enquanto essência. A carta de que falo é a do Romantismo, que suplantou escolas anteriores descobrindo nas cores e nos tons, bem como na vida e suas expectativas reais, o elemento da emoção. E agora, o que fazer após a fantástica descoberta de impor à realidade representada um estado de espírito?!

É ai que surgem olhos revolucionários, comprometidos com a eterna renovação e habilitados a insuflá-la nos corações humanos: os  impressionistas. Tratados inicialmente como corruptores do bom gosto e do bom senso, adjetivados como incompetentes manchadores de telas, nasciam ali os filhos da luz e do movimento nas artes plásticas. Ali despontavam Monet, Manet, Seurat, Signac, Renoir, Cézanne, Gauguim… e Vincent Van Gogh. Este, como Gauguim, dava passo maior, acrescentando em suas criações não só o movimento e a luminosidade acentuada, mas também o seu próprio estado de espírito. Haviam dado o pontapé inicial para o surgimento de outra expressão encantadora: o Expressionismo.

Apesar da genialidade, o holandês ruivo e de caráter excêntrico era tratado como um louco, até pelas crianças, que o seguiam apedrejando-o e a galhofar dele. Van Gogh percebeu a linguagem plástica já na maturidade e lidou com ela dos 31 aos 37 anos de idade, num processo quase compulsivo de criação, basta pensar que nesses seis anos ele pintou mais de setecentos quadros. Salvo engano, vendeu uma tela em vida. Hoje seus trabalhos ocupam vários museus, inclusive um específico em Amsterdã e, no mercado de artes, seus quadros estão entre os mais caros do mundo.

Olhamos comovidos para o passado e deixamos de ver a mesma realidade diante dos nossos olhos. Flávio Rufino, por exemplo, artista plástico palmarense que viveu no Cabo de Santo Agostinho por uns vinte anos.

Conheci Flávio após incursões artísticas pela África, por volta de 1982. Ele foi à minha casa para ver uns quadros que estava pintando e dar opinião. Retribui a visita e fiquei impressionado com a singularidade de seu olhar, e esta singularidade, esse olhar próprio sobre as coisas, para mim, é o paradigma universal do valor estético da criação artística. Rufino tem isto e, por isto, tem uma palheta surpreendente, ou melhor, inusitada, além de uma composição de paisagens, marinhas e naturezas mortas que faz acordar no observador a certeza de que nada é esgotável quando se trata de criação. Apesar disso, Flávio Rufino passa por nossa geração como se não significasse nada, talvez por não trazer um sobrenome que o ligue às Capitanias Hereditárias. No entanto, o lunático que vaga meio a esmo pelas ruas do Cabo e de Palmares é um homem vivo, ao contrário da maioria que não o vê.

*Ivan Marinho de Barros Filho é professor, especialista em Economia da Cultura.

Foto destaque: Mulheres e cajus, acrílica do artista plástico palmarense Flávio Rufino.