Maria Sulanqueira vai voltar
Jénerson Alves*
Em 07.08.2020
“- Pra onde tu vais, Maria?
– Vou pra Feira da Sulanca!”
Do mesmo jeitinho da música de Valdir Santos, saía Maria balançando as ancas e com a mala na cabeça. Toda vida trabalhou na feira. Aquele conglomerado de bancos e pessoas não era somente um local de trabalho. Era a vida dela. Amiga de todos os outros sulanqueiros. Esse negócio de ‘concorrência’ fica para empresário.
– Aqui – dizia ela –, todo mundo é amigo. Oxe! A feira é como uma mãe, Deus abençoa e todo mundo consegue ganhá seu pão de cada dia.
Até que chegou um tal de um ‘bichinho’ que ninguém vê. O que se vê é ele matando gente em tudo que é canto. O Zé até amolou a faca e ficou de ‘butuca’ ligada.
– Se esse tá de coronga chegá aqui na frente, eu dou-lhe uma facada no bucho! Quero negóço com ele, nada! – falou.
Até que Zé descobriu que esse ‘bichinho’ não pode ser morto com facada.
– Tem que passá é água e sabão, ou álcool em gel. Se ele não morrê afogado, morre bêbo – explicou Maria.
Ele não entendeu muito bem. Mas ficou quieto. A Maria sabe o que diz. Mulher forte. Bonita. Morena de um sorriso fácil, olhos grandes e castanhos que parecem enxergar o coração dele. Uma risada de bruguela, tão gostosa que a gente ri também. Quando fica brava, fica vermelha e bate os pés feito menina maluvida. E Zé sabia que, bom mesmo, é quando a raiva passa… Carinho bom… Beijo doce… Eita! Vive lembrando que a conheceu num São João. Venceu a timidez pra chamá-la pra dançar e percebeu que queria dançar com ela a vida inteira. E assim foi. Essa história eu conto depois. Ou não. Sei lá…
Vamos voltar para o tal ‘bichinho’ invisível. Maria só lembra que, de repente, decidiram que não era mais pra ter feira. Agora, danou-se! Como garantir o leite da mulecada? Veio um tal dum auxílio emergencial que, pra tirar o dinheiro, a frente do banco ficou com tanta gente que mais parecia a Sulanca do fim de ano. Parecia nada! Sulanca é vida, é alegria. Aquela fila era outra coisa… Maria, desde nova, aprendeu a ganhar seu dinheirinho com trabalho. Mulher autêntica, de fibra. Nordestina. Caruaruense.
Dia desses, quase caiu pra trás quando viu uma cena: a Sulanca havia sido presa! “Oxe, e a feira não é livre?”, pensou. Coçou os olhos. Olhou direitinho… pois num é que botaram uns ferros, trancando os bancos tudinho!? Vôte! “E querem matar o ‘bichinho’ ou matar a gente de susto e fome?”. Viu a Prefeitura isolar a feira com aço. Aquilo doeu seu coração – que é de carne, não de aço. Viu um deputado ir pra mesma feira pedir que não fizessem uma desgraça daquela. Viu no outro dia a Prefeitura tirar os tapumes. Foi um teste, disseram.
– Só se quiseram testar minha paciência; mas vá! – murmurou.
Tanto aperreio estava mexendo com ela. Certa noite, Maria teve um sonho. Sonho, não. Pesadelo! No pesadelo, diziam que nunca mais a Feira iria abrir. Nunca mais! Os homens estudados não descobriam vacina para o ‘bichinho’ e todo mundo ia ter de ficar em casa. A tal da ‘renda mínima’ ia ser paga pra todo mundo. Daria pra comer e pagar as contas. Mas ninguém ia precisar trabalhar. Acordou-se suada, no meio da noite, gritando. Olhou o relógio. Três horas da manhã. Chorou e pediu pra Jesus que nunca acontecesse uma coisa dessa. “Se até o Senhor foi carpinteiro, é porque quer que a gente viva do suor derramado. Faça que devolvam nossa Feira”, clamou, chorou e orou… Voltou a dormir. O Zé ainda roncava. Nem ouviu o grito dela. Ah, Zé manzanza…
x-x-x-x-x-x
Alguns dias depois, veio a notícia. A Sulanca vai voltar! Maria sabia muito bem quem foi que lutou para que a feira voltasse. E estava uma alegria só! Gargalhando, puxou o marido, deu-lhe um arrocho bom. “Nós vai voltá a trabalhá”, repetia… Botou pra tocar aquela música que a deixa toda ancha:
“- Pra onde tu vais, Maria?
– Vou pra Feira da Sulanca!”
*Jénerson Alves é jornalista e membro da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel. Escreve às sextas-feiras.
Foto: Viliane Gomes/Cortesia.