Amanheci velho

Por

Jaques Cerqueira*

Em 09.08.2020

Parece que foi ontem! Mas, de repente, acordo e descubro a máscara da velhice que se sobrepôs ao meu rosto jovem. O esgar de rugas em lugar do frescor da pele adolescente. Estou velho. Como num passe de mágica, faço as contas e percebo ter cruzado a barreira dos catorze lustros. E agora se descortina diante dos meus olhos cansados outra (e cruel) realidade: a da discriminação da juventude (como se os jovens não entendessem que um dia provavelmente também envelhecerão). Em uma de suas obras, a poeta portuguesa Florbela Espanca dizia: “Se os que me viram já cheia de graça/ Olharem bem de frente em mim/ Talvez, cheios de dor, digam assim:/ “Já ela é velha! Como o tempo passa! …”

Pois então, com esse passar do tempo, minha dignidade esgarçada pela velhice se esvai a cada instante pelo ralo da ingratidão. Pior é que do rol dos ingratos, nem mesmo o espelho escapa: até este esqueceu o halo da minha juventude, um dia refletido em sua superfície mágica, e agora me aponta rugas com o dedo em riste. J’accuse! – me diz ele, voz rouca e condenatória à sombra do esquecimento.

E na sentença prolatada pelo meu espelho, recordo um pensamento do ensaísta francês Michel de Montaigne: “A velhice faz-nos mais rugas no espírito do que na cara”. Mas, no meu caso, não somente há rugas no espírito. Há também muitas cicatrizes deixadas pelos meus erros, que, na verdade, terminaram sendo meus melhores professores.

Aprendi, com o passar dos anos, que para uns a velhice é dádiva divina. E para outros, castigo dos céus. Sem jamais negar a existência de Deus, fico com a segunda assertiva. Afinal, velhice e morte são parentes muito próximos. Cruéis e definitivos.

E, na via-crúcis da idade avançada, como uma espécie de antecâmara da morte, percebo que no Brasil é duro demais ser velho. Todos os dias, tenho meus direitos desrespeitados em cada esquina, diante de olhares de indiferença e até de repulsa de muitos que cruzam meu caminho. Parodiando João Cabral de Melo Neto, em sua Morte e Vida Severina, eu diria que nós velhos “somos muitos severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras”. Pedras de uma estrada pedregosa que se alonga de forma indesejada, vida afora.

*Jaques Cerqueira é jornalista e escritor. Escreve aos domingos.

Foto destaque; jornalgrandebahia.com.br

Nota do editor:

Jaques Cerqueira encontra-se internado no Hospital de Traumas, recuperando-se de AVC, Esta crônica com a qual nos presenteia foi escrita no início de julho e estava na ‘gaveta’, como se diz no jornalismo.