Liberdade nas mãos dos espectadores, a conveniência da Netflix está criando um problema?

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 09.08.2020

A relação da Netflix com o cinema é um tema constante no meio cinematográfico. Desde que a empresa resolveu entrar no circuito de festivais e premiações, personalidades do meio opinam sobre os malefícios e os benefícios que esse novo modelo causa ao cinema.

Steven Spielberg é um dos maiores críticos. O diretor de obras-primas como “A Lista de Schindler” e “Tubarão” já expressou preocupação com a entrada dos serviços de streaming e o impacto que ele pode causar no cinema. Ele, inclusive, chegou a propor novas regras para a elegibilidade de filmes para a premiação do Oscar e sugeriu que os filmes produzidos pela Netflix, em vez de participarem do Oscar, sejam incorporados no Emmy, cerimônia que premia as melhores obras audiovisuais da TV. O cineasta espanhol Pedro Almodóvar e o britânico Christopher Nolan também manifestaram opiniões contrárias ao modelo de distribuição da Netflix, que ignora a exibição dos seus filmes nas salas de cinema. Ambos defendem a experiência de assistir aos filmes na tela grande como um elemento ontológico da arte cinematográfica.

Do outro lado, vemos os feitos e as possibilidades que a Netflix criou. Grandes filmes da década passada dificilmente seriam produzidos dentro da dinâmica comum de produção e distribuição estabelecida pelos estúdios de cinema. “Roma”, filme vencedor de 3 óscares, de Alfonso Cuarón, é um bom exemplo de um filme que só foi possível ser realizado por conta do modelo de distribuição do serviço de streaming. “Minha pergunta para você é: qual você acha que seria o tamanho do lançamento de filme mexicano, em preto e branco e falado em espanhol, sem grandes estrelas? Qual seria o tamanho deste lançamento nas redes de cinema tradicionais? (…)”, foi o que Cuarón respondeu quando perguntado sobre o conflito entre a Netflix e as salas de cinema. Martin Scorsese, no seu “O Irlandês”, foi outro grande diretor beneficiado pela liberdade de produção que a Netflix dispõe. Por não se preocupar diretamente com questões que envolvem bilheteria, a empresa garante mais liberdade para os realizadores deixarem seus filmes do jeito que desejarem. Daí “O Irlandês” – filme que Scorsese estava há mais de uma década procurando produtores interessados e que custou 175 milhões de dólares – ter três horas e meia de duração, coisa que dificilmente seria possível se produzido por um estúdio tradicional.

Essas discussões sobre a Netflix giram em torno de duas questões principais:

A primeira é o impacto que os serviços de streaming pode gerar nas salas de cinema, já que não é mais necessário exclusivamente sair de casa e pagar um ingresso para vermos o grande lançamento do mês, ou o mais novo vencedor do Festival de Veneza, o vencedor do Oscar, do Globo de Ouro ou BAFTA. O que era exclusivo da sala de cinema agora é compartilhado pelas telas das TVs, notebooks, tablets e smartphones.

A segunda – que é consequência da primeira – diz respeito ao efeito que a sala de cinema, o espaço físico, causa no espectador. Chamado pelo psicólogo alemão Hugo Mauerhofer (XAVIER, Ismael. A Experiência do Cinema (antologia)/organização Ismail Xavier. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2018) de situação cinema, este estado mental que, para Mauerhofer, se assemelha ao estado de sono, ocorre pelas condições que a sala de cinema possibilita e é uma das principais causas do fascínio que o cinema consegue causar no espectador. “É o isolamento mais completo possível do mundo exterior e das suas fontes de perturbação visual e auditiva. A escuridão que cria uma sensação de tédio e, ao mesmo tempo, aguça a imaginação; a passividade voluntária de ficar sentado na poltrona apenas recebendo os impulsos visuais e sonoros do filme; O anonimato que relaxa e nos isola para uma relação introspectiva mais direta com uma grande tela de cinema. Todos “esses elementos psicológicos (…) são os alicerces da ‘psicologia da experiência cinematográfica’” que proporcionam o maior envolvimento emocional possível do espectador com a realidade do filme. E, querendo ou não, esse estado acaba sendo minimizado quando assistimos filmes em um local que, por diversos motivos, fica nos trazendo a realidade presente.

Para todos os efeitos, os dois pontos levantados anteriormente estão ligados a questões extra fílmicas. Mas, no início de agosto, uma nova funcionalidade implementada pela Netflix nos leva a um novo questionamento a respeito da integridade do filme, pois muda drasticamente a relação entre as obras, os espectadores e os seus realizadores.

A funcionalidade em questão permite que a velocidade de reprodução dos filmes e séries possa ser escolhida pelo próprio usuário do serviço. Será possível assistir em uma velocidade mais lenta, mínimo de 0,5 vezes a velocidade normal, ou torná-la até 1,5 vezes mais rápida. Inicialmente essa funcionalidade só está implementada nos smartphones Android de algumas regiões. A Netflix planeja adicioná-la nos aplicativos para IOS e nos navegadores de internet, mas ainda não há nenhuma previsão de implementação nos aplicativos das TVs.

Se pensarmos a obra de arte audiovisual como um conjunto de imagens que se sucedem em um tempo predeterminado para criar algum sentido, o elemento tempo (junto com o espaço) é material fundamental na concepção de uma obra. O tempo é um material que é moldado pelo artista para alcançar uma forma determinada. A duração dos planos que é definida no momento da montagem segue um critério estético específico, a fim de obter um efeito expressivo específico. Esse aspecto fica mais claro quando o tempo do filme é condensado ou dilatado por meio da câmera lenta ou rápida. Ao permitir ao espectador a liberdade de mudar a velocidade que o filme flui, a Netflix desvirtua a própria obra audiovisual que vai ser exibida.

O que seria de “Joias Brutas” sem seu ritmo hiperacelerado que causa uma desorientação proposital, se o espectador escolhesse assisti-lo em uma velocidade reduzida para conseguir entender tudo melhor? Como seria ver os filmes do malaio Tsai Ming-Liang, que usa o tempo morto como um elemento para causar desconforto e até tédio, em um tempo acelerado? Acredito que poderiam até ser mais palatáveis de assistir, mas aí estaríamos vendo uma outra coisa que não o filme original pensado pelo seu realizador. Ver um filme em uma velocidade alterada não difere em nada de ouvir uma música em uma velocidade alterada, ela pode até fazer sentido, algumas podem até ficar melhor do que na velocidade original, mas fica absolutamente claro para todo mundo que a música se transforma em outra.

Com isso em mente, é possível enxergar esse novo recurso como uma prova do olhar equivocado tanto da Netflix, quanto dos clientes que pediram por isso. Parece que eles entendem os filmes e séries apenas como algo que só apresenta valor pela história contada ou mensagem passada. Eles parecem não entender que o impacto da história/mensagem não acontece por ela propriamente, mas, primordialmente, pela forma que ela é trabalhada. A maneira que se conta uma história, as escolhas estéticas feitas pelo seu realizador ao concretizar o que reside inicialmente em sua mente, é o que vai dar valor ou não para aquela determinada ideia. Se a arte audiovisual fosse o que parece que eles acham que ela é, ela não passaria de um mero subproduto de outras artes, como a literatura, pintura e o teatro, mas sabemos que ela é muito mais que isso.

Pedro H. Azevedo escreve e administra a página Um Toque do Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.

Foto destaque: techtudo.com.br