Se encanta o bispo da libertação, Dom Pedro Casaldáliga

Por

Roberto Arrais*

Em 09.08.2020

Natural de Balsareny, na brava região da Catalunha, Espanha, onde nasceu em 16 de fevereiro de 1928, o padre Pedro Casaldáliga chegou ao Brasil em janeiro de 1968, em plena ditadura civil-militar implantada em 1964 e referendada de forma ainda mais monstruosa no ano de sua chegada, com a decretação do Ato Institucional número 05, o AI-5, que endureceu o regime, mas que alguns saudosistas do fascismo teimam em vangloriar, o que significa aplaudir a tortura e a violência contra as liberdades.

Foi consagrado bispo de São Félix do Araguaia (MT) pelo papa Paulo VI, em 1971. Na sua Carta Pastoral, afirmou: “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. Nessa Carta ele mostrou seu compromisso com os povos da floresta, com os indígenas, quilombolas, peões, agricultores e escravizados.

Dom Pedro Casaldáliga assumiu com todas as letras a denominada Teologia da Libertação, transformando-se num problema para os latifundiários, madeireiros e os senhores representantes da ditadura, que davam abrigo a esses exploradores da região. Ele tornou-se a voz dos índios, dos ribeirinhos, dos povos da floresta, unindo sua visão evangelizadora com a voz da classe.

Com isso, foi se transformando numa voz nacional e que repercutia internacionalmente ao denunciar as perseguições e os crimes cometidos contra as lideranças dos povos trabalhadores e indígenas. A esse mesmo tempo, compunha versos na terra que ele passou a amar profundamente. “(…) No ventre de Maria/ Deus se fez homem./ Mas, na oficina de José/ Deus também se fez classe (…).” Nesse verso ele se coloca como igreja que assume o lado dos trabalhadores na histórica luta de classes.

“Fui naturalizado pela malária…”.

Ao se transformar num dos mais destacados líderes da Igreja dos Oprimidos, o religioso começa a sofrer ameaças dos latifundiários e mandantes da região em conflito. Em 1977 ele é convocado para depor na CPI da Terra e um dos deputados ligados ao latifúndio levantou a seguinte questão: “O que tinha a ver um bispo estrangeiro com conflitos de terra?” E ele respondeu da seguinte forma: “Fui naturalizado pela malária…”.

Ele foi construindo sua trajetória com coerência e sempre em defesa dos mais sofridos e enfrentando as ameaças constantes que chegavam a ele através de recados e mensagens de que ele era um ‘cabra marcado para morrer’.

Ele tinha uma visão de mundo bem coerente com a visão de outros bispos como Dom Evaristo Arns, em São Paulo; Dom Pelé, João Pessoa e Dom Helder Câmara, em Recife e Olinda. Todos esses religiosos ajudaram a organizar a luta da classe trabalhadora, abrindo suas dioceses para os movimentos e criando espaços de evangelização como ‘Encontro de Irmãos’, ‘Comunidades Eclesiais de Base’, ‘Pastoral da Terra’, ‘Pastoral Operária’, ‘Pastoral da Juventude’. Também abriram a Igreja de Jesus Operário, para que as forças de luta e resistência pudessem adentrar e participar ativamente da luta cotidiana pelo direito a uma vida digna.

Nos anos 70 militei – no bairro em que morava, Casa Amarela – na luta do Movimento ‘Terras de Ninguém’, junto com camaradas que estavam tendo uma ação clandestina pelo PCB. Eram eles João do Cigarro, Manoel Marques e Vital. Atuávamos  junto com a Igreja da Teologia da Libertação, representada pelos padres Reginaldo Veloso, Humberto Plumem e Geraldo.  Desse processo comecei a atuar como militante na Ação Católica Operária (ACO), a convite de Arnaldo, desse movimento, e Padre Romano Zufferey, assistente da ACO em Pernambuco.

Padre Romano sofreu um processo de expulsão do Brasil, pois era suíço, e o bispo Dom Pedro Casaldáliga publicou carta e fez pronunciamentos contra essa perseguição, se solidarizando com a luta de resistência que se processou aqui e no mundo. E finalmente o processo foi arquivado.

Noutro poema o bispo-poeta Casaldáliga escreve e descreve a “Confissão do Latifúndio”: “Por onde passei,/ plantei/ a cerca farpada,/plantei a queimada./ Por onde passei,/ plantei/ a morte matada./ Por onde passei,/ matei/ a tribo calada,/ a roça suada,/ a terra esperada…/ Por onde passei,/ tendo tudo em lei,/ eu plantei o nada”. Versos que demonstram sua visão firme de combate ao latifúndio, um dos grandes responsáveis pela violência e injustiça social.

Além do compromisso social com a luta dos povos da floresta ele tinha uma ação ecológica na defesa dos rios e da floresta amazônica. Num dos versos em que faz uma ‘Louvação a comadre chuva’, ele dizia: “(…) Para os compadres, vistosa:/ respeitada até do sol,/ Vens, por graça do Divino;/ Faltas, por culpa de nós”.

Ele também dedicou um poema ao capitão Carlos Lamarca, reconhecendo sua luta guerrilheira pela libertação do povo brasileiro. O poema intitulado “Serra Lamarca” destaca, em alguns de seus versos: “(…) Nos campos calados,/ a muita pobreza/ gritava./ Lamarca!/ E a Serra Lamarca,/ proa de futuro,/ a noite rasgava”.

Ganhou destaque na construção de frases com poesia e conteúdos relacionados à vida e à luta libertária, que denominou de “Noemas”. Destacamos algumas delas que ilustram muito bem a sua identidade, o seu jeito de pensar e de agir diante dos desafios do cotidiano:  “Fazer do povo submisso/ um povo impaciente./ Fundir os muitos córregos/ numa torrente”;  Outra: “Somos a solidão que suportamos/ que acolhemos,/ que partilhamos,/ que transcendemos”; E mais outra: “Quem souber somar conflitos/ – e dividi-los por dois -/ ganha consciência de classe”.

O grande romancista sertanejo Guimarães Rosa disse em sua obra “Grande Sertão: Veredas” “(…) que os homens especiais não morrem, eles se encantam (…)”.

Dom Pedro Casaldáliga se encantou neste dia 08 de agosto de 2020 pela floresta amazônica, pelo rio Araguaia e seus córregos, pelas comunidades indígenas e ribeirinhas, para continuar semeando a libertação do povo trabalhador brasileiro e do mundo.

Perde o Brasil um de seus filhos de coração, que mesmo não nascendo em terras brasileiras, aqui viveu sua paixão pela terra, pelos rios, pela história e pela gente, especialmente da região de São Félix do Araguaia.

Roberto Arrais é jornalista(repórter-fotgráfico) e mestre em Gestão Pública.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: João Guerrero/Revista CPT