A carta, Casaldáliga e a Doutrina Social da Igreja
Enildo Luiz Gouveia*
Em 13.08.2020
No dia 27/07/20 152 bispos católicos romanos ligados a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) escreveram uma carta ao Papa Francisco intitulada “Carta ao Povo de Deus”, onde denunciam a situação do país. Seguiu-se na mesma linha uma carta assinada por mais de 1.000 padres e diáconos permanentes e uma nota de apoio assinada por centenas de leigos e religiosos (frades, freiras, irmãs, irmãos). No Dia 08/08/20 morre o bispo Dom Pedro Casaldáliga, ícone da Teologia da Libertação. As cartas geraram descontentamento por parte do governo federal e de uma parcela do clero católico e também dos fiéis conservadores e defensores do governo federal. Sobraram insultos nas redes sociais onde se acusavam um lado de comunistas e o outro de fascistas.
A Doutrina Social da Igreja (DSI) é um conjunto de documentos (encíclicas papais, documentos conciliares entre outros) que expressa a posição da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) sobre economia, política, cultura, meio ambiente etc. A DSI dialoga com outros documentos da Igreja incluindo o Catecismo da Igreja Católica (CIC) que reserva capítulos dedicados às questões sociais. Uma leitura tendenciosa da DSI e do CIC pode levar a conclusões equivocadas do tipo: a ICAR é comunista. Por outro lado, o não conhecimento desses documentos, levará a uma fé deslocada da realidade e, até mesmo, a defesa de ideias fascistas. Destaco aqui dois pontos do CIC sobre a economia: “(…) Todo sistema segundo o qual as relações sociais seriam inteiramente determinadas pelos fatores econômicos é contrário à natureza da pessoa humana e de seus atos.” (CIC, 2423); “Uma teoria que faz do lucro a regra exclusiva e o fim último da atividade econômica é moralmente inaceitável. O apetite desordenado pelo dinheiro não deixa de produzir seus efeitos perversos. Ele é uma das causas dos numerosos conflitos que perturbam a ordem social. Um sistema que ‘sacrifica’ os direitos fundamentais das pessoas e dos grupos à organização coletiva da produção é contrário à dignidade do homem. Toda prática que reduz as pessoas a não serem mais que meros meios que têm em vista o lucro, escraviza o homem, conduz a idolatria” (CIC, 2424). E ainda, no tópico 2425 do CIC a ICAR rejeita expressamente as ideologias ateístas tanto do comunismo como do capitalismo, pois, por caminhos distintos, ambos colocam a economia como fim último das relações humanas.
Ao contrário do que pensam alguns, a ICAR não defende a negação da política e da transformação social. Na Encíclica Evangelho Gaudium (p. 183) diz o Papa Francisco: “(…) para que os grandes princípios sociais não fiquem meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar as suas consequências práticas, para que possam incidir com eficácia nas complexas situações hodiernas (…) A Igreja não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça. (…) pois, o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e construtivo, orienta uma ação transformadora (…)”. Ou seja, a Fé tem consequências práticas, pois, do contrário, será mera alienação doutrinal e confessional.
Assim como em 1973 a ICAR se levantou contra os desmandos do governo militar através da carta “Eu ouvi o clamor do meu povo” hoje, seguindo a DSI e o CIC se levanta contra as pretensões fascistas do governo federal. Não se trata de ser contra ou a favor de determinado governo, trata-se de profetismo e, neste sentido, Casaldáliga, os 152 bispos, os mais de 1.000 padres, diáconos, leigos, religiosos, se posicionaram em defesa da vida, dos indígenas, do meio ambiente, da liberdade e da democracia.
*Enildo Luiz Gouveia é professor, Dr. em Geografia, bacharelando em Teologia Católica e membro da Academia Cabense de Letras – ACL.
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