Labirintos do medo

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 13.08.2020

Nossa vida é fortemente marcada pelo medo. O medo nosso de cada dia. São muitos medos, entre eles, o medo de ser deixado para trás, de se tornar insignificante, de não ser percebido como importante ou essencial para determinada função, ocupação ou relação. O estigma da exclusão é uma das ramificações do labirinto do medo. O ser humano, caracterizado pela sociedade do desempenho, precisa correr muito para dar conta das múltiplas demandas, andar não é o suficiente. O adágio que muito se ouve nesses tempos é: “preciso correr com isso”, para dar tempo. Não há tempo nem para um “olá”, para relaxar numa prosa de afetividade, para perguntar se a pessoa está bem, o que está lendo ultimamente, como está a vida, flanar, sonhar em conjunto, conversar sobre os sentimentos que rodeiam a todos, esperançar a vida, admirá-la, amá-la. Sinto falta disso. Nos labores da vida, não nos permitirmos repousar, tentar desvendar percursos múltiplos de conexões, caminhos conjuntos, aprender a conviver no coletivo. Comumente não é possível, porque soa como “perda de tempo”, diletantismo. Assim, o autocentramento é o que está em voga, contudo, é o que nos fragmenta, nos separa e nos deixa mais solitários e com mais medo.

O sujeito do desempenho é aquela pessoa focada em si mesma; quase não enxerga o seu entorno nem as outras pessoas. Não dá tempo. Vive-se numa busca eterna para vencer demandas e a si mesmo, até chegar à exaustão. Dispara para produzir, fazer coisas. O ser humano atual é o autêntico fazedor de tarefas, ativista de si mesmo. Essa hiperprodução e autoexploração o deixa exaurido. Ele é o protótipo da sua liberdade, de sua autonomia, dono de si. Na busca de um encontro consigo, ele teme não ser bom o suficiente e não ter todos os atributos que o validam para a sociedade do desempenho. Entra em desespero, se deprime, se cobra, diz que não sabe das coisas e que não é bom o necessário. Bom para o que e para quem?

O que eu sinto muito é que os encontros humanos estão cada vez mais raros e escassos.

A sociedade do desempenho coisifica as pessoas, retira-lhes a sensibilidade, a afetividade, as amizades. Tudo precisa ter uma utilidade, ser mensurado, quantificado, definido, estipulado, medido e comedido. Se a pessoa for resistente e insistir, pode ser rotulada de fora do lugar, invasiva, sufocadora, desatenta, desinteressante, sem importância, sem serventia, ser humano carente. O que eu sinto muito é que os encontros humanos estão cada vez mais raros e escassos. As cobranças pós-modernas criam fissuras no ser humano, pela excessiva autoprodutividade, pois essas coisas são as que passam a ter importância, surgem os autoquestionamentos: o quanto rendi hoje? Se não se produz o suficiente, que nunca bate a meta, vem a frustração e culpa. Tive um dia produtivo? Qual interesse em conviver com determinada pessoa? Surgem as relações utilitárias. A essência humana vai adoecendo, perdendo o interesse pela vida, pelos outros, se distanciando de si mesmo.

O ócio criativo tão propalado pelo sociólogo italiano, Domenico De Masi (2000), nos leva a rever essa noção de tempo, esse tempo reduzido e definido a cumprir metas relacionadas a produtividades, a relações de interesses. Paradoxalmente, pode levar-nos, também, a refletir sobre nossas finitudes e enxergarmos que temos prazos de validade, isto é, não somos eternos em termos físicos, partiremos em algum dia, pois somos passageiros na vida. Assim, é interessante nos questionarmos como estamos conduzindo as nossas vidas e as nossas relações. Quais as experiências que permitimos que aconteçam? Quando olhamos o mundo, a vida, as pessoas e a nós mesmos, enxergamos com quais olhos? Com os olhos do amor? Do acolhimento? Da compreensão? Ou da culpabilização? Do julgamento? É sabido que as práticas sociais opressoras, excludentes, julgadoras que permeiam os nossos cotidianos, nos afrontam, nos machucam e refletem violências, nocividades e medos.

A saída do labirinto do medo é pelo aprendizado do amor. O amor que reconhece a interdependência entre todos os seres. É preciso nos curarmos. Como promover a cura de todos? Como construir relações positivas? Espalhando bem-estar e alegria para o mundo. Olhando as pessoas a partir do mundo delas. Acolhendo as experiências alheias, mesmo sem conhecê-las. Isso é um ato de amor. Essas são as possibilidades de se sair do labirinto do medo, com a sensibilidade ativada e apoiando-se uns nos outros. O mundo tem uma plasticidade. Não devemos enxergar as coisas com fixidez, tudo muda e tem sua maleabilidade. A questão é como vemos o mundo e o que vemos, pois nem sempre a forma que enxergamos os outros, as relações são a realidade. Quando nos fixamos na ideia de que nada dá certo para si, ou que o outro é que está errado, é resultado de um pensamento estreito e individualista, uma forma de ver a vida centrada em si mesmo.  O medo está muito relacionado com a concepção de sobrevivência e de segurança. O trabalho é um vetor importante para se pensar as searas da vida. Diz Domenico De Masi que “o trabalho não é tudo”. O trabalho é muito importante, fundamental, é um direito humano para a garantia da nossa dignidade e sobrevivência. Contudo, não precisamos morrer de trabalhar, como atesta o sociólogo. De Masi assegura, ainda, em sua obra magistral  “O Ócio Criativo” (2000, p.328) que o ócio, defendido insistentemente, não é a pessoa “ficar de pernas para o ar”, mas não se matar de tanto trabalhar, pois somos viciados na labuta diária.

Domenico de Masi (2000, p.329) nos chama a atenção, referindo-se ao ócio criativo, que é preciso resgatar o tempo livre da banalidade, do consumismo, da violência e que a cultura guie as práticas sociais e não só a economia. Assim, podemos construir um outro modelo de sociedade, de relações sociais que não são mais pautadas pelo medo e pela autoexploração produtivista, e, sim, pelo caminhar compassivo, respeitoso e acolhedor para com todos os seres, incluindo a nós mesmos. Essa ansiedade de produzir sempre mais e de forma acelerada é um dos espaços do labirinto do medo que nos assombra permanentemente.

Existe uma ética para o ócio. A pedagogia do ócio tem todo um conjunto de atuações, tem sua ética, sua estética, suas dinâmicas e suas técnicas, como diz Domenico De Masi (2000, p.325) e ressalta que educar para o ócio “significa ensinar a escolher um filme, uma peça de teatro, um livro. Ensinar como pode estar bem sozinho, consigo mesmo […]. Ensinar o gosto e a alegria das coisas belas. Inculcar a alegria”. É preciso educar as pessoas, os jovens, diz De Masi, para viver sozinho ou em companhia, para a prática da solidariedade, para o voluntariado. É preciso ensinar, ainda, diz o sociólogo, como se evitar a alienação pelo tempo vago, que é tão danosa como a alienação decorrente do excesso de trabalho. Depreende-se, com isso, que a maioria das pessoas não sabe como se distrair e descansar e sempre estão envoltas nos labirintos do medo, medo da falta de algo. Até quando estão em lazer acham que estão perdendo tempo. Educar é enriquecer a vida de significados que coadunem com o bem comum, algo que se estenda a todos.

De Masi ( 2000, p.327-328) diz que encontrou muitos “mestres no campo do trabalho”, mas poucos “mestres da vida e do tempo livre”. Diz também o pensador que gosta muito de “atividades, criatividades, inovações e a produção eficiente de novos bens e serviços capazes de aliviar o cansaço humano”. O cansaço dialoga muito com o medo, o medo de sofrer. Assim, se busca fugir do sofrimento, ser feliz e ser aceito. É um contraponto com a sociedade do cansaço ou do desempenho, refletida pelo filósofo Byung-Chul Han, em sua obra “Sociedade do Cansaço” (2017, p. 29-75), ao afirmar que a sociedade do desempenho produz pessoas adoecidas, frustradas, deprimidas e que comumente sentem-se fracassadas. Ressalta, também, que “o sujeito do desempenho se encontra em guerra consigo mesmo” decorrente da auto cobrança e isso causa adoecimentos e ideia de não pertença. Han observa que “o cansaço profundo afrouxa as presilhas da identidade”, é um arrancar de si mesmo, um desgarramento de suas raízes, de sua essência, nos termos, também, do filósofo alemão, Heidegger.

Zygmunt Bauman (2014, p.117), na obra “Cegueira Moral”, assevera que “o medo usa várias máscaras. Ele pode falar a linguagem da experiência íntima e existencial”. O medo fala das nossas incertezas, das inseguranças, da falta de proteção por meio de linguagens variadas, um gesto, um olhar, um senão! Que dizer em épocas de pandemia, como a COVID19? Esse medo, certamente, se potencializa. E vem a questão: qual o nosso lugar diante do medo? Diante das incertezas da vida?  Seguindo os acordes das notas dessa toada da vida, já nos advertia Fernando Pessoa, com o célebre verso “Navegar é preciso. Viver não é preciso”, numa incessante convocação do despertar da consciência do ser, de que as regras da vida não são imutáveis, tudo pode mudar a qualquer momento, em qualquer lugar, com qualquer um de nós.

Bauman (2008, p.31-32) afirma no seu livro “O Medo Líquido” que muitos medos são mais aterradores porque são difíceis de compreender. E, no caso da pandemia, do novo Coronavírus, os medos são potencializados e não localizadas as origens das ameaças, elas são imperceptíveis, sabe-se que estão em algum lugar, ou em toda parte, mas não enxergamos. Surgem daí síndromes de pânicos, fobias. Esses medos nos mostram, muitas vezes, a nossa impotência diante da vida. Contudo, nossas reações, efeitos e reflexos a esse estado emocional nem sempre são observadas. Um agravante a isso tudo é que “as condições da sociedade individualizada são inóspitas à ação solidária ”diz Bauman, e que a sociedade individualizada “caracteriza-se pelo afrouxamento dos laços sociais, esse alicerce da ação solidária”. Cada vez mais, nessa sociedade da liquidez, os laços humanos se tornam frágeis, voláteis, não duradouros. E o autocentramento denota uma perda de sensibilidade pelo outro, por si mesmo, pelo mundo, pela vida. Passa a valer o “meu medo” e o medo do outro não conta.  O escapar só cabe ao EU separado do outro. O medo nessa dimensão fragmenta ainda mais as relações humanas.

Não existem superatividades. Já se mostrou que o ser humano não é uma ilha. Então, é interessante que aprendamos a olhar as nossas relações e o mundo de forma mais ampla, mais solidária e acolhedora, pois, ao contrário, podemos sucumbir. A ética da alteridade, tão analisada por Emmanuel Lévinas, ensina que o ser humano deve acolher o outro e assumir responsabilidades por este, contudo, o individualismo, as frouxidões dos laços humanos e o cansaço da excessiva produtividade condicionam as relações.

Inspirada pelo ócio criativo de  Domenico De Masi finalizo com a beleza de um fragmento da música “Paciência”, dos compositores Carlos Eduardo Carneiro De Albuquerque Falcão e do querido músico Lenine: “Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma/Até quando o corpo pede um pouco mais de alma/A vida não para/Enquanto o tempo acelera e pede pressa/Eu me recuso faço hora vou na valsa/A vida tão rara/Enquanto todo mundo espera a cura do mal/E a loucura finge que isso tudo é normal/Eu finjo ter paciência/E o mundo vai girando cada vez mais veloz/A gente espera do mundo e o mundo espera de nós/Um pouco mais de paciência…”.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania/SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco.

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