Eu vou morrer um dia. Você também. (Ou como a consciência da morte fortalece a urgência do senso de missão).

Por
Jefte Amorim*
Em 27.08.2020

Eu nasci com esse senso de que a morte está à espreita e de que não vou demorar a encontrá-la. A bem da verdade, sempre tive a sensação de que vou morrer cedo – ao menos, bem antes da longevidade média. Imagino que venha disso essa ânsia que tenho por realizar (e essa paixão pelas pessoas, suas histórias e pelos trabalhos).Às vezes penso que a morte caminha bem perto. Desde criança entendi o que era essa perda: antes dos 10 vi o corpo esfaqueado (e ensanguentado) da mãe de dois vizinhos (feminicídio, vítima do ex-companheiro); minha mãe, num acidente de kombi, foi dada como morta (mas sobreviveu, após uma temporada no hospital); a primeira promessa que me lembro de ter feito na vida, ao melhor amigo de infância (que viu a mãe ser assassinada pelo pai), foi de que quando adultos acharíamos e mataríamos o pai dele.

Perdi meu tio Levi (assassinado). Perdi um bom amigo de escola técnica (atropelado) – até hoje choro com Vento no Litoral porque ele era fã de Legião e tocou na Missa de 7º dia. Ouvi todos os tiros naquele “justiceiro” na Rua São João. Chorei a morte do meu avô “Bujão” (fui ao sepultamento só pra estar com meu pai), do meu avô Mário (assassinado em casa) e do meu avô Jessé (insuficiência pulmonar). Sim, são três avôs – bênção concedida pela adoção de minha mãe.

Soube da morte de muitos meninos com quem cresci ou que via pelo bairro. Até planejei, na adolescência, a minha própria morte. Talvez por tudo isso tenhamos feito as pazes: sei que ela vem, não tenho o intuito de apressá-la, mas também não fujo. Aprendi a olhar para a morte de um outro jeito: como parte natural de um ciclo. Afinal, morte não é o oposto de vida; é o oposto de nascimento. Hoje, até mesmo gosto de pensar sobre a morte: precaver cenários, orientar pessoas, poupar o peso para quem fica.

Pensar que vou morrer sempre me lembra de pensar sobre a vida que quero viver – e isso, sim, muda o jogo. Por isso, diante da morte, não tenho medo: tenho pressa. Não a pressa de quem corre tenso sem olhar a paisagem. Mas a pressa de quem aprecia cada pedaço do caminho e aprende a dizer não para o que não importa, afinal tempo é commodity e eu não o tenho a perder. Como diria Raul, “eu tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar e eu não posso ficar aí parado”.

Tive a sorte de entender há algum tempo – algum punhado de anos – o que realmente me move. Ouvi, desde cedo, que “quem não vive para servir não serve para viver”. Por um tempo isso ecoou em mim como prisão de baixa autoestima: eu nunca me sentia bom o bastante e me colocava, cada vez mais, como servil. Continuo sendo servo, mas me desvencilhando das amarras do servil. A morte tem me ensinado o poder do NÃO, e é só com esse poder mágico que é possível caminhar ao meu SIM.

Vivo para gerar impacto com o que faço. Vivo para responder às perguntas que me movem: por que consegui e tantos não? Como posso ajudar mais pessoas a conseguirem também? Sou feliz facilitando a aprendizagem e o desenvolvimento das pessoas – consigo mesmas, com seus trabalhos, com seus negócios. Poucas palavras me são tão caras quanto LEGADO, e por isso tenho pressa: não posso desperdiçar um dia da minha vida sem que deixe para o mundo um caminho melhor. Inclusive com minhas cagadas, que servirão de exemplo a não seguir (e que também por isso não devo esconder).

Talvez por isso essa foto de Thich Quang Duc queimando sereno em posição de lótus, em protesto em Saigon, se conecte tão profundamente comigo (até mesmo planejo tatuá-la). Talvez por isso admire tanto a memória do trabalho de meu pai: ele será lembrado, mais do que por ser um escritor inigualável, por ser um artista generoso que despertou o talento de incontáveis pessoas e semeou sua missão; ouvirei menos um “mestre da poesia” e mais um “foi por ele que passei a escrever”.

Hoje, 29 anos recém-completados, é esse o meu caminho. Ser o que se é, fazer o que se pode, transformar o mundo aos poucos (sem pretensões globais: contento-me com o mundo que me cerca). Com a consciência de que o mundo muda não com a intensidade, mas com a persistência paciente das atitudes e exemplos – apesar de todas as cagadas do caminho.

A consciência da morte nos torna melhores. Feliz vida pra mim (e pra vocês)!

*Jefte Amorim é professor e pesquisador. Expert em Marketing & Growth. Estrategista de Negócios com foco em Criatividade e Humanização, com foco em UX, BI e Desenvolvimento Pessoal. Membro efetivo da Academia Cabense de Letras.

Foto destaque: Malcolm Browne/pt.wikipedia.org