SALA DE CINEMA – A Cor Da Romã: um poema visual
Pedro H. Azevedo*
Em 06.09.2020
O MUNDO É UMA JANELA
O mundo é uma janela, estou cansado dos arcos.
Quem lhe dá atenção se fere, estou cansado das ferroadas.
Ontem era melhor que hoje, estou cansado de amanhãs.
O homem não é sempre o mesmo, estou cansado de jogos.
A riqueza não tem valor, quando é movida somente por interesse.
O bom homem é aquele que leva uma vida simples e honrada neste mundo.
O mundo não ficará para nós, dizem os sábios.
Quero voar como o rouxinol, estou cansado dos jardins.
Quem diz que eu vou viver desde a manhã até a noite?
Nas mãos de Deus é fácil para o homem chegar e partir deste mundo.
Não se segue o caminho reto, e o povo mente a passos largos.
Nem sequer um entre vinte mantém um vassalo, estou cansado dos senhores.
O mundo não ficará para nós, não importa o quanto desfrutemos e festejemos.
Crianças de colo, infantis filhos de Adão, malditos sejam por sua conduta volúvel.
Minha paciência se esgotou, não suporto o escárnio dos homens.
Meus amigos se tornaram meus inimigos, estou cansado de jogos.
Sayat-Nova disse: não há remédio para minhas dores, que se multiplicam.
Não posso ter a doce glória do amanhã, agora só aumentam minhas penas.
Assim eu choro como o rouxinol, enquanto crescem as pragas de meu roseiral.
Elas não deixarão minhas rosas florescerem, estou cansado da capina.
O poema acima foi escrito pelo trovador armênio que viveu no século XVIII Sayat-Nova. O poeta mais importante do seu tempo em todo Cáucaso do Sul é a figura central de A Cor da Romã, filme soviético de 1969, de Sergei Parajanov. Celebrado por mestres do cinema como Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard e Martin Scorsese, com este último inclusive trabalhando na restauração do filme em 2014, a obra-prima do diretor soviético vai da infância à morte do trovador de maneira completamente inovadora e incomum. O texto que precede a abertura do filme já nos notifica: “Este filme não pretende contar a história de vida de um poeta. Ao invés disto, o cineasta tentou recriar o mundo interior do poeta através das trepidações de sua alma, de suas paixões e tormentos, usando amplamente de simbolismos e de alegorias próprias à tradição dos poetas-trovadores da Armênia Medieval”.
Deixando claro desde o seu primeiro minuto, o filme já assume a poesia trovadoresca da Armênia como forma primordial para contar sua história. Totalmente desprendido de qualquer didatismo narrativo, tudo é muito enigmático para quem não conhece a biografia de Sayat-Nova e a cultura armênia. Não vou perder tempo tentando explicar o que entendi das metáforas do filme e suas simbologias (o capítulo POEMAS EM LÍNGUA ARMÊNIA DO TROVADOR SAYAT-NOVA: UMA TRADUÇÃO EM PORTUGUÊS de Deize Crespim Pereira, presente no livro Estudos da Ásia: artes, tradução e identidades culturais, possui uma breve mas reveladora biografia do poeta e alguns poemas que podem ajudar os mais curiosos a entender melhor o filme) porque isso não é o que realmente importa em uma obra cinematográfica, mesmo em um filme como esse, que codifica seu conteúdo através de uma forma bem particular. O que interessa aqui, muito mais que o conteúdo, é a forma genial e hipnotizante que Parajanov encontrou para falar do poeta e de sua alma, uma estruturação que busca, antes de tudo, uma relação sensorial com o espectador.
A Cor da Romã está entre os filmes que mais consegue se aproximar de um poema musicado transposto para a tela em toda a história do cinema. As cenas são como versos e a montagem lida com eles não por uma relação lógica prosaica, mas através de uma relação emocional poética, o filme possui um ritmo de montagem bem determinado e perceptível. Cenas são repetidas como estribilhos visuais; cenários, cores, figurinos e personagens se relacionam criando poderosas e elaboradas rimas visuais. Mesmo sem entender claramente o significado do que se passa em tela, o filme captura a atenção como poucos. É como uma bela canção em uma língua que você desconhece, mas que mesmo assim consegue passar sentimentos somente pela sua forma.
Se observados isoladamente, os planos do filme são verdadeiras obras de arte. Parajanov cria incríveis tableaux vivants baseadas nas iluminuras da região do Cáucaso. Nas imagens, a cultura armênia é retratada com um ar mítico. Os costumes da armênia e os símbolos, rituais e espaços da Igreja Apostólica Armênia, onde o poeta viveu boa parte da vida como sacerdote, estão presentes em praticamente todo o filme. Através de Sayat-Nova, Parajanov expõe a rica iconografia da Armênia, a primeira nação a se tornar oficialmente cristã no mundo.
Para criar uma obra audiovisual que dialoga através de uma relação poética vários elementos são explorados pelo diretor: as cenas se repetem como refrões, as imagens mimetizam pinturas da época em que o filme se passa, a montagem é ritmada e os próprios poemas de Sayat-Nova são elementos que trazem um bom grau de lirismo para o filme. Junto a tudo isso existe uma escolha essencial que ajuda a tornar A Cor da Romã um filme tão cativante: a exploração de uma relação primordial estabelecida com a linguagem cinematográfica para criar um paralelo entre o lugar da poesia na arte escrita e as estruturas linguísticas do próprio cinema. Tentarei explicar isso a seguir.
A poesia é a forma mais primitiva de literatura, não no sentido de ser simples mas de ser cronologicamente anterior a prosa e de se relacionar primordialmente por meio de uma estrutura formal que busca alcançar algo por meio de um impacto à sensibilidade humana. Parajanov busca atingir esse mesmo efeito através de uma forma de cinema também primitivo. Um cinema que remete a filmes feitos antes dos anos 30 e que lida com a realidade de forma frontal com a realidade, revelando um aspecto fotogênico do que está sendo enquadrado. Por isso absolutamente todos os planos de A Cor da Romã são fixos, não há nenhum movimento de câmera em todo os 79 minutos de duração do filme; os poemas de Sayat-Nova são apresentados através de intertítulos, como se estivéssemos vendo um filme mudo; as falas são raras e reduzidas a orações e frases ditas ao vento (somente na última cena do filme possui um minúsculo e brevíssimo diálogo). Ora, tudo isso remete a um cinema primordial que possuía uma relação objetiva com o que está sendo filmado, um cinema que se preocupava basicamente em mostrar a ação, e que era capaz de revelar a natureza fundamental da imagem mais do que tudo, que nesse caso específico é uma realidade poética construída por um magistral trabalho da direção de arte.
Assim como a poesia trabalha na organização de palavras para criar uma forma impactante, Parajanov, com os “planos puros” que uma abordagem mais primitiva proporciona, trabalha a organização das imagens para criar formas que, mais do que símbolos que ocultam sentidos específicos, nos alcançam por uma relação sensorial estabelecida com o espectador que acontece graças a qualidade artística da obra ao revelar acima de tudo a sensibilidade do poeta (tanto Sayat-Nova, quanto o próprio Sergei Parajanov) ao assimilar o mundo ao seu redor e transformá-lo em algo belo, transcendental.
*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.
Foto: imdb.com
Espetacular a sensibilidade com que o artigo constrói esse diálogo da poesia com filme. Muito bom.
Obrigado pelo comentário, Nelino! Abraço!
Pedro, parabéns! Muito impactante a elaboração do texto. Muito instigante e nos leva a desejar apreciar o filme, bem como, vivenciar a experiência sensorial que o filme sugere. Abraços.
Obrigado pelas palavras, Vera! O filme vale a pena ser visto, é uma grande experiência mesmo! Abraço