Quando tudo está perfeito, algo está errado

Por

Enildo Luiz Gouveia*

Em 10.09.2020

Senhor Ulisses (nome fictício numa história real) abandonou a família: filha e esposa. Vinte e oito anos depois, agora convertido e pastor de uma Igreja neopentecostal, Senhor Ulisses decide retornar para “converter” sua antiga família e pedir perdão e, assim, melhorar sua imagem perante a comunidade de crentes. Senhor Ulisses agora é bolsonarista e tenta converter a família à sua religião e à sua ‘ideologia’ política onde, segundo o mesmo, estão as pessoas de bem que defendem a família. Senhor Ulisses decide abandonar a família pela segunda vez ao perceber que sua filha agora é empoderada, pós-graduada, ainda solteira por opção, tem bom emprego e é crítica do atual governo.

A maioria das religiões decidiu obedecer as orientações dos médicos e fecharam seus templos por causa da pandemia, pois, em caso de saúde, os médicos têm a última palavra. Noutro momento, os médicos com base na própria medicina afirmam que uma criança de 10 anos está grávida, vítima de estupro, corre risco de morte se a gravidez for levada até o fim. O médico que fez o procedimento de aborto foi alvo de críticas ferrenhas vindas, em geral, de pessoas religiosas.

André (nome fictício numa história real) é amante da bagaceira. Enche a cara todo fim de semana, dirige sua moto sob efeito de álcool, ‘pega a geral’ com as minas, afirma ser intolerante com a corrupção, mas admite dar propina pra polícia na hora que é pego em blitz, além de já ter vendido seu voto em eleições passadas. André afirma que uma pessoa ser homossexual é uma vergonha para a sociedade e um péssimo exemplo para a família brasileira.

Na escola não é raro o estudante argumentar que o professor deveria lhe aprovar ou lhe dar nota maior com base num erro involuntário que o mesmo professor cometeu ao aprovar outro aluno. Assim, ao invés de alertar o professor para corrigir e não mais cometer o erro, tenta persuadir o mesmo a permanecer no erro.

As mesmas pessoas, em geral da elite brasileira, que se vestem de verde e amarelo e se dizem patriotas, são as mesmas que defendem a venda do nosso patrimônio para o capital estrangeiro, batem continência para bandeiras de outros países e, no menor tempo livre que têm, preferem viajar pra Europa que conhecer o Brasil.

Seguimos assim num moralismo por conveniência. Nada do que se passa com nosso país hoje me causa surpresa!

*Enildo Luiz Gouveia é professor e membro da Academia Cabense de Letras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do  blog Falou e Disse.