Saudade, ode ao amor

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 10.09.2020

O lugar da memória, o lembrar, rememorar. A saudade mora nesse lugar do vivido, lugar da lembrança. A memória e a saudade não são a mesma coisa, mas dialogam. O cotidiano “é uma história a meio caminho de nós mesmos”, como ensina Michel de Certeau (1996, p.31), em sua obra ‘Invenção do Cotidiano’. O cotidiano nos chama a responsabilidade para a tessitura do viver. O tempo presente exerce uma pressão sobre a feitura da vida humana. É prudente estarmos atentos sobre as marcas ou toques que deixamos impressos na nossa construção existencial. É importante verificarmos os rastros que vamos deixando no nosso caminhar. Não devemos esquecer o “mundo memória”, nas palavras de Péguy, segundo Certeau.  Esse mundo é revestido de múltiplas dimensões: memórias da infância e suas brincadeiras, memória olfativa – aquela iguaria que ativa o nosso paladar ao rememorarmos -, memórias de lugares, de gente, de prazeres, de experiências que vivenciamos. Nesses lugares reside a saudade.

A saudade é um apelo ao tempo que ficou no passado, mas não passou, pois o ressignificamos quando nos lembramos e o atualizamos com as nossas percepções, sentimentos e valores do momento presente. Na arte de fazer e narrar a vida, a saudade é um componente importante. A saudade traz de volta à nossa memória, por exemplo, momentos variados que experienciamos, encontros humanos afetivos, desejos e prazeres. Reviver, viver novamente, com outra tessitura de necessidades e desejos do presente. A saudade busca reter em nossa essência a emoção dos prazeres vividos, mostrando a capacidade e sensibilidade humana de carregar consigo os entrecruzamentos de vivências que constroem a trajetória humana. Assim, o ser humano se eterniza. É uma evocação da vida em nós.

Existe a memória daquilo que desejamos esquecer. Já o sentimento da saudade é aquilo que queremos eternizar, é o lugar dos encontros, da lembrança, do rememorar, do enigma da vida. É o lugar dos sonhos, de busca de sentidos, é o lugar das utopias. A saudade possibilita contar as nossas histórias a partir da história de outras pessoas que encontramos na vida. A saudade é um fio condutor das nossas subjetividades que pode nos alegrar e nos mobilizar para a vida. Sonhar com aquilo que aconteceu dota-nos de sentidos. Embora o sonhar, mesmo com o não acontecido e vivido, pode também nos impulsionar para a vida.

A saudade pode nos alegrar, mas também pode nos fazer chorar. Mas, são lágrimas provocadas pelo desejo da presença da outra pessoa, mostram a vontade de viver novamente algumas experiências. A saudade é um termômetro das nossas humanidades. Aspiramos vivenciar momentos semelhantes ao acontecido, mesmo considerando as singularidades do que se experienciou, pois vivenciar o momento tal qual como aconteceu é impossível, esse não pode ser recapturado, será sempre outra experiência. Ao sentir a saudade e rememorarmos, estamos, também, refazendo a trajetória, uma vez que nos nutrimos de saudades e relembramos o acontecido. Estamos vivendo e contando outra história. Estamos sempre ressignificando o vivido.

Quem de nós nunca parou um momento na vida e sentiu saudades? Quem nunca expressou o sentimento, mesmo em silêncio e pensou: que saudade! O que faço com a saudade? Sentimento genuíno, sentir saudades até do não vivido. A saudade é uma ode ao amor. A saudade traz no seu bojo o sentimento do amor. O vivido ou o que se aspirou viver. A saudade é o fio condutor de unir seres em busca do tempo vivido, perdido, não acontecido e estabelecer conexões.

A saudade é um sentimento universal, embora se diga que o vocábulo tem uma expressão singular na Língua Portuguesa advindo dos portugueses, nas suas conquistas do além-mar, no século XV, no advento do projeto português de colonização. Sabe-se que os lusitanos almejavam retornar para a sua terra natal, sentiam falta e desejo de estar com as pessoas queridas, daí a expressão saudade articulada ao sentimento saudoso, do retorno à sua terra de origem, e às pessoas que nutriam estimas. Outras culturas têm uma expressão correlata, não igual, para o sentimento da saudade.

Eu sinto saudades de você! Ao dizer isso com alma, o ser humano afirma suas humanidades, suas subjetividades, faz uma declaração de amor genuína. Ele precisa reconhecer a necessidade da outra pessoa e do seu passado na sua narrativa histórica. Ainda mais, o ser humano precisa reconhecer a saudade como um lembrete sentimental importante e que deixa lacunas nas relações interpessoais, interferindo na vida uns dos outros. A saudade como uma ode ao amor é a expressão máxima do vivido e um sentimento de gratidão pela experiência vivenciada. A saudade é o atestado da nossa incompletude. É a mostra da nossa interdependência. É o convite humano de reconhecermos a ausência da outra pessoa, das coisas que vivemos, como falta de nós mesmos, pois mostra o nosso inacabamento, como postulou notoriamente Paulo Freire.  A saudade é a certificação de que só existimos em razão do contexto que envolve outros seres humanos e seu entorno.

Nessa metáfora da vida que a saudade impõe, lembramos que “criar é relembrar e relembrar é criar”, como afirma o filósofo Gilles Deleuze (2006, p 10), em sua obra ‘Proust e os Signos’. No ato de ressignificar o vivido/acontecido, por meio da saudade e suas reminiscências, outra cena surge nas nossas memórias, no nosso corpo, no nosso sentir. Outra história passa a ser saboreada quando nos debruçamos sob a saudade e rememoramos coisas, gentes, lugares, experiências. A saudade é produtora de sentidos. Cada vez que sentimos e vivenciamos experiências de saudade somos brindados com outro recontar, com outro sentimento do vivido, outro fazer humano. Como retrata o célebre poema de Manuel Bandeira, “Evocação do Recife”, “…Como eram lindos os montes das ruas da minha infância (…) A casa de meu avô…Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade…”

A saudade causa dor também, chega a incomodar, em outros momentos alegram a nossa essência. A saudade é um sentimento que incorpora um inventário humano dos feitos que merecem ser rememorados. A saudade resiste ao tempo e traz no seu bojo os registros de uma vida. As percepções do tempo presente vão produzindo novos sentidos e reconfiguram a saudade em suas múltiplas dimensões. A saudade mostra que a vida humana é permeada por sofrimentos (quando nos impossibilita resgatar o vivido), alegrias, desafios, nostalgia, melancolia, amorosidade, afetividades. Só não devemos nutrir tristezas em nossos corações, embora esse sentimento também faça parte das nossas experiências.

O ano de 2020 está sendo um período emblemático, devido a COVID-19. O Coronavírus é uma ameaça real, contudo como não visualizamos onde está essa ameaça, tornamo-nos mais vulneráveis. Assim, para nós, 2020 é um ano limite. Um ano lacunar. Ano que nos “roubou” possibilidades. Ano que nos mostrou o sentimento de saudade tão forte. Tantas coisas que nos foram suprimidas que incidem no nosso ser. A saudade evidencia tão bem isso. O ano que está interferindo nas nossas memórias, naquilo que poderíamos ter vivido, como a ida para a escola, a socialização escolar, as brincadeiras, o deslocamento para o trabalho, impossibilitados para muitas pessoas e suas subjetividades, como as conversas, as afetividades. As nossas humanidades ficam mais vulneráveis, embora reconheçamos que muitas aprendizagens estão sendo experienciadas na pandemia e no isolamento físico, mas fica muito premente a saudade do vivido e do que não se pode viver.

Escutei estudantes relatarem, em reuniões virtuais com o Projeto Bem Querer, a saudade da escola, o esforço para ter uma rotina de estudos em casa. Ouvi muitos estudantes narrarem a preocupação com a sua vida estudantil e com o seu futuro profissional diante da pandemia. Lembraram que muitos vestiam a farda para interagir melhor com os estudos. Escutei, também, professor relatar da saudade dos alunos e se perguntar como eles estão em casa. Angústia, ansiedade e saudade também, dialogam, dependendo do contexto. Esses relatos nos mostram que a presença humana é essencial para a trajetória de vida. Embora esforços estejam sendo feitos para cumprir as demandas escolares e outras também que incidem nas nossas sobrevivências, as relações humanas presenciais são fundamentais. A vida humana precisa ser preservada e garantida como o primeiro direito humano, e as relações que estabelecemos devem reconhecer o princípio da interdependência e o quanto precisamos nos apoiar uns nos outros. A saudade afirma nossas humanidades e a necessidade da outra pessoa. O simples fato de olhar as pessoas alivia a alma e o toque físico humano é curador.

Finalizo essas reminiscências sobre a saudade com o escritor checo-francês, Milan Kundera (2008, p.11), em sua obra ‘A insustentável Leveza do Ser’, quando diz que “quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está a vida […], em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se tornar semirreal e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.”

O que escolher, o peso ou a leveza? Fica o convite para que vejamos a saudade, ode ao amor, como um fio condutor de leveza em nossas vidas.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/ Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.

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