A verdade tropical nos cacos de um narciso sem espelho

Por

Mário Gouveia Júnior*

Em 11.09.2020

Este ensaio aborda as impressões que tive depois de assistir ao documentário “Narciso em Férias”, inspirado no capítulo de mesmo nome da autobiografia de Caetano Veloso, intitulada “Verdade Tropical”, publicada em 1997. Por meio da narrativa do afamado cantor e compositor eu pude revisitar a história lida há muitos anos naquele seu livro, e, como já era de se esperar, tive uma experiência completamente diferente de quando desvendei, pela primeira vez, as suas dores e delícias de ser quem é. O esforço por não dar spoilers será recompensado, espero, por algumas associações que pude empreender a partir da narrativa apresentada pelo documentário. Vejamos.

Sexta-feira, 11 de setembro. Esta é a data que marca meu velho calendário de plaquinhas substituíveis a cada dia, embora eu não o faça com muita frequência. Ontem à tarde, no ápice do meu ócio produtivo (?) do 178º dia de minha quarentena, assentado sobre todos os meus privilégios de poder ser, estar, ficar e trabalhar em casa, assisti ao já mencionado documentário. Hoje, portanto, não é 13, mas não tive como não pensar em uma data doída de nossa história que, funestamente, associa a sexta-feira ao numeral 13.

E, nesse sentido, sou levado a repetir a máxima atribuída a Miguel de Cervantes: “yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”.

Sim, sexta-feira, treze. Para muita gente, quando esta data surge no calendário é motivo de preocupações; dia de má sorte justificado tanto pela mitologia nórdica quanto pelos escritos judaicos e católicos romanos, ou mesmo por eventos históricos, como a perseguição e morte dos templários, no século XIV. Alguns numerólogos, todavia, consideram que o numeral treze, formado pelos números 1 e 3, simboliza coragem, iniciativa e disposição no sentido de correr riscos; autoconfiança e otimismo, leveza e liberdade. Para o bem ou para o mal, não se pode ignorar a superstição que envolve essa data. E, nesse sentido, sou levado a repetir a máxima atribuída a Miguel de Cervantes: “yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”. Isto é, pelo sim, pelo não, guardar reservas diante de certas energias pode custar menos do que pagar para ver. Até os mais leoninos narcisos, um dia são levados a se fiar em suas crenças.

Foi numa sexta-feira treze do último mês do mítico ano de 1968, em que o jovem Edson Luís tivera a vida tirada e virara bandeira de resistência; quando a juventude francesa já saíra às ruas, florescendo um ideário de exigir o impossível em plena primavera europeia; e os atores da peça “Roda Viva” foram brutalmente agredidos em função de seu ofício. Foi justamente no fim desse ano que Zuenir Ventura, em seu famoso livro, disse que “não acabou”, que o Brasil viu ser decretado o Ato Institucional nº 5.

O AI-5 representou o fechamento do Congresso Nacional e a perda de mandatos de parlamentares contrários à ditadura civil-militar, suspensão de garantias constitucionais, como o habeas corpus por crimes de motivação política, e mesmo a tortura, comumente empregada a serviço desse Estado de exceção, configurado desde 1º de abril de 1964. No pior 13 de dezembro da história deste país, escancararam-se as portas do arbítrio e do período mais violento da ditadura.

É nesse contexto histórico e político que se inicia a narrativa do documentário produzido por Paula Lavigne e dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, “Narciso em Férias”. Ao som de “Súplica”, imortalizada na voz de Orlando Silva, começa a ser apresentado um dos capítulos mais dramáticos da vida de Caetano Veloso, cantor e compositor leonino, anos depois, autointitulado “Narciso”: a sua arbitrária prisão no dia 27 de dezembro de 1968.

O protagonista e único depoente relembra a insônia, que sempre o acompanhou, e ainda hoje o acompanha, após uma noitada com amigos e sua então esposa, Dedé Gadelha, com quem dividia o primeiro apartamento em São Paulo. Relembra também, entre outras canções, “Súplica”, cuja letra curiosamente ficaria associada à experiência que começaria a ter logo no começo daquela manhã, quando, muito cedo, policiais à paisana bateram em sua porta, sob o pretexto de conduzi-lo para um interrogatório. Na verdade, o que viria nos dois meses seguintes àquele evento seria a sua reclusão, em meio a torturas psicológicas, isolamento e ausência de explicações ou mesmo interrogatórios. A era do “Clame-chame o ladrão” estava inaugurada.

Ao perder a liberdade e vir-se confinado em uma prisão solitária a sua insônia o abandonou, assim como as capacidades de sua alma de se expressarem por meio da lágrima e do esperma. É ponto interessante perceber as relações entre a vigília e o sono vivenciadas por Veloso e as presentes na trama que rendeu a Gabriel García Márquez o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982. Em “Cem anos de solidão”, Márquez conta as aventuras fantásticas de uma vila, Macondo, em que, em dado momento, às pessoas faltaram o sono por conta de uma febre. O efeito colateral da incapacidade de dormir fora o esquecimento.

Com Caetano na história de sua vida real, ao que parece, o sono profundo veio a agir como o justo oposto; por ter perdido a sua condição de ser para além do corpo que ali esteve recluso, ele já não sentia as pulsões inerentes ao seu espírito: a capacidade de chorar e o desejo de ter desejo sexual. Enquanto o suor e a urina são fisiológicos, e, portanto, demasiadamente humanos, o choro e o gozo são expressões do corpo comandadas pela alma.

Restava-lhe o sono que o faria esquecer. Esquecer o sentimento de estar sendo injustiçado, anulado. Tanto dormiu e tanto esqueceu, que chegou à borda do precipício de esquecer o que vivera fora da prisão, quase acreditando que sempre vivera no cárcere, e que seu casamento e sucesso recentes seriam apenas fruto de um sonho, embora, recluso, não sonhasse. Ademais, não havia espelhos. O Narciso, que achava feio o que não era espelho, saiu de férias, ou, nas palavras do próprio: “o Narciso estava morto”. Por dois meses, não viu o próprio rosto, como também não viu o ano de 1968 acabar nem passar o Carnaval do ano seguinte, em Salvador, onde a sua marchinha “Atrás do trio elétrico” faria o maior sucesso.

Quando pôde receber visita de sua esposa, reerotizando-se; esta lhe trouxe notícias do mundo de fora e fotos do planeta, a primeira em que a Terra “aparece inteira sem estar nua, e sim coberta de nuvens”. Esse episódio, anos depois, virou uma doce canção do próprio Caetano.

Relata o medo de baratas e a frequente aparição daqueles insetos em sua cela com a mesma poesia e superstição que lhe chegavam aos ouvidos músicas de um rádio de pilhas. Chegou até a mensurar melhor o tempo por meio da quantidade de vezes que uma música se repetia na programação. E acerca das músicas que ouvia ou das quais se lembrava, as classificava como boas e como ruins, a depender dos presságios que lhes despertavam; senhas para o inferno ou para o paraíso era o que representavam algumas letras de canções, que, por vezes, lhe foi pedido que cantasse no cárcere.

O tempo, que depois, seria por ele chamado de compositor de destinos e tambor de todos os ritmos, começou a passar mais rápido quando Caetano começou a empregar com mais ênfase a sua superstição e sua capacidade de fazer cálculos e emular situações. Se aquela barata sobreviveria ao jato de baygon, isso significaria, em sua mente, mais ou menos tempo até que fosse interrogado, e, a posteriori, solto. Se aquela música vai tocar uma certa quantidade de vezes antes do almoço. E de todas que ouviu a que me pareceu mais marcante era a que, ao ser reproduzida, o fazia ver a cena de sua libertação: “Hey, Jude” – grande sucesso da época:

 

            Hey, Jude, don´t be afraid                        (Ei, Jude, não tenha medo)

            You were made to go out and get her      (Você foi feito para sair e conquistá-la)

            The minute you let her under your skin   (No minuto que você a deixar sob da sua pele)

            Then you begin to make it better             (Então você começará a ficar melhor)

            […]                                                            […]

            Hey, Jude, don’t let me down                     (Ei, Jude, não me decepcione)

            You have found her now go and get her    (Você encontrou-a, agora vá e conquiste-a)

            Remember to let her into your heart         (Lembre-se de deixá-la entrar em seu coração)

            Then you can start to make it better          (Então você pode começar a ficar melhor)

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.

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