Escravidão vitalícia, ainda
José Ambrósio*
Em 12.09.2020
Ao acessar a página de notícias da Organização das Nações Unidas, a ONU News, hoje pela manhã, me deparei com a seguinte manchete: Relatores pedem ao Mali para erradicar “escravidão baseada em ascendência.” Chocante, mas, infelizmente, uma realidade que persiste no país africano, continente que teve milhões de seus filhos caçados e arrancados à força das comunidades por escravagistas brancos e conduzidos em embarcações que ficaram conhecidas como ‘navios negreiros’ principalmente para as Américas, a partir do século 16 e até 19. O Brasil foi um dos grandes receptores.
Se a manchete provoca repulsa e revolta, os fatos que levaram o relator independente sobre a situação dos direitos humanos no Mali, Alioune Tine, e Tomoya Obokata, relator especial sobre formas contemporâneas de escravidão incluindo causas e consequências a pedirem a erradicação, são ainda mais doloridos. Quatro homens considerados “nascidos em escravidão” foram espancados até a morte. Uma mulher de 80 anos e um casal ficaram gravemente feridos no ataque ocorrido na região de Kayes, em 1º de setembro.
Oficialmente, a prática da escravidão foi abolida no país em 1905 e é descrita como crime contra a humanidade no Código Penal. Mas, para os especialistas da ONU, persiste o sistema de escravidão baseada em ascendência. As pessoas são consideradas “nascidas em escravidão” por causa de seus antepassados “capturados como escravos” e por isso essas pessoas eram tidas como “propriedades das famílias escravagistas por gerações”. Nessas condições, o ser humano é obrigado a trabalhar sem salário, pode ser “oferecido como herança” e é desprovido de direitos humanos básicos.
Um dos homens assassinados, de 69 anos, considerado escravo, havia ganhado uma ação na justiça sobre disputa de terra contra um imã, um líder religioso islâmico. Alguns membros da comunidade discordaram da decisão judicial e cercaram a casa das quatro vítimas fatais.
No ano passado, um integrante de uma organização que combate a escravidão foi expulso do vilarejo dele na região de Kayes sob ordens do chefe do local.
Cerca de 50 pessoas que contestaram o status delas como “escravas” foram obrigadas a fugir para outro vilarejo. Para os relatores, a situação prova a falha do Mali em implementar compromissos internacionais de proteção dos direitos humanos. Segundo os especialistas, em alguns casos os chefes tradicionais e autoridades locais são cúmplices nesses ataques.
Em comunicado, os relatores – que são independentes das Nações Unidas e não recebem salário pelo seu trabalho – condenaram os “atos bárbaros e criminosos que violam o direito à vida, à integridade física e à dignidade humana.” Destacaram que essas violações não podem ficar impunes.
“Nada pode justificar a continuidade da prática da escravidão”, afirmaram, pedindo investigação imediata e imparcial. Eles também solicitaram a adoção pelo Mali de uma lei específica que criminalize a escravidão como aconteceu com outros países da região incluindo Níger e Mauritânia. E condenaram a punição a defensores de direitos humanos e ativistas que lutam contra a escravidão baseada em ascendência.
A escravidão ainda é um fenômeno muito real e amplo, afetando mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo, conforme divulgou a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em dezembro de 2018. Um quarto desse total são crianças.
No Brasil, decorridos 132 anos da abolição da escravatura, muitos patrões ainda submetem trabalhadores a condições análogas ao escravo. Estima-se que mais de 54 mil pessoas já foram resgatadas de situações análogas à escravidão desde que o Brasil passou a tomar medidas para combatê-lo. O Artigo 149 do Código Penal brasileiro define trabalho análogo ao escravo como aquele em que seres humanos estão submetidos a trabalhos forçados, jornadas tão intensas que podem causar danos físicos, condições degradantes e restrição de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto. A pena se agrava quando o crime for cometido contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) informou ter, no dia 28 de janeiro deste ano, 1,7 mil procedimentos de investigação dessa prática e de aliciamento e tráfico de trabalhadores em andamento. Segundo dados do Radar da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, em 111 dos 267 estabelecimentos fiscalizados em 2019, houve a caracterização da existência dessa prática com 1.054 pessoas resgatadas em situações desse tipo. O levantamento aponta ainda que, no ano passado, o número de denúncias aumentou, totalizando 1.213 em todo o país, enquanto em 2018 foram 1.127, conforme a Agência Brasil de Notícias.
O meio rural continua concentrando o maior número de registros, com 87% dos casos: produção de carvão vegetal (121); cultivo de café (106); criação de bovinos para corte (95); comércio varejista (79); cultivo de milho (67). O trabalho escravo urbano também fez 120 vítimas, a maior parte na confecção de roupas (35). Também houve registros na construção civil (18), em serviços domésticos (14), construção de rodovias (12) e serviços ambulantes (11).
Ainda segundo o estudo, Minas Gerais foi o estado com mais fiscalizações (45 ações) e onde foram encontrados mais trabalhadores em condição análoga à de escravo (468). São Paulo e Pará tiveram 25 ações fiscais, cada, sendo que em São Paulo foram resgatados 91 trabalhadores e no Pará, 66.
Importante também observar que o maior flagrante da fiscalização em um único estabelecimento ocorreu no Distrito Federal. Nada menos que 79 pessoas estavam trabalhando em condições degradantes para uma seita religiosa.
O levantamento mostra ainda que entre 2003 e 2018, cerca de 45 mil trabalhadores foram resgatados e libertados do trabalho análogo à escravidão no Brasil. Segundo dados do Observatório Digital do Trabalho Escravo, isso significa uma média de pelo menos oito trabalhadores resgatados a cada dia. Nesse período, a maioria das vítimas era do sexo masculino e tinha entre 18 e 24 anos de idade. O perfil dos casos também comprova que o analfabetismo ou a baixa escolaridade tornam o indivíduo mais vulnerável a esse tipo de exploração: 31 % eram analfabetos e 39% não haviam concluído sequer o 5º ano.
O desrespeito aos direitos humanos por muitos patrões no Brasil é tamanho, ainda, que o País instituiu o seu Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, que é lembrado em 28 de janeiro. A data homenageia os auditores-fiscais do Trabalho mortos em 28 de janeiro de 2004 quando se deslocavam para uma inspeção em fazendas da região de Unaí (MG). O episódio ficou conhecido como a Chacina de Unaí.
Em 2 de dezembro, é lembrado o Dia Internacional para a Abolição da Escravatura, que marca a adoção da Convenção da Assembleia Geral das Nações Unidas para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem, que entrou em vigor em 1951. O dia é uma oportunidade de aumentar a conscientização sobre este problema global e focar na erradicação das formas contemporâneas de escravidão, como tráfico de pessoas, exploração sexual, trabalho infantil, casamento forçado e recrutamento forçado de crianças para uso em conflitos armados.
*José Ambrósio é jornalista e membro da Academia Cabense de Letras.
Foto destaque: ONU/Marco Dormino –
Parabéns pelo excelente texto! A escravidão é uma afronta à dignidade humana é uma violência que atenta contra a vida pelas condições degradantes que essa prática incide na vida das pessoas! Muito bom seu texto! Maravilhoso!
Obrigado, Vera. Há muita dor ainda pelo mundo provocada pela exploração degradante de pessoas frágeis, indefesas e esquecidas pelo Estado.