Não é o Brasil, são apenas alguns brasileiros

Por

Eugenio Jerônimo*

Em 12.09.2020

Tantas são as atrocidades cometidas no Brasil durante os últimos anos que o velho professor, aturdido, pergunta:

— Isso é o Brasil?

O velho mestre repassa em sua mente as ações cruéis perpetradas contra os brasileiros, a indivíduos específicos, mas também a grupos sociais ou a toda a sociedade. Há delituosas ações e igualmente delituosas inações.

A brutal execução de Marielle Franco e seu motorista. E como se o crime não fosse por si só bárbaro, uma fração das redes sociais tentou praticar o assassinato de sua reputação. Imagens foram montadas para vinculá-la ao tráfico. Entre os espalhadores das fotos adulteradas está uma desembargadora.

O fuzilamento de um músico preto por militares do Exército. Chamava-se Edivaldo dos Santos Rosa. O crime que havia cometido: estar indo a um chá de bebê na casa de parentes. Os inequívocos oitenta tiros disparados no veículo do músico não quiseram ouvir as aflitas alegações de que ali estava uma família. A desculpa do Exército: haver confundido Edvaldo com um criminoso que teria efetuado disparos contra a guarnição.

A omissão do presidente do Brasil diante da mais devastadora epidemia da história. Depois, quando os cadáveres começaram a desmoralizar o discurso de que se tratava apenas de uma gripezinha, a inconcebível declaração do chefe de Estado de que não é coveiro.

A ameaça do presidente à integridade dos dentes de um jornalista que ousou fazer o seu trabalho. Teve o atrevimento de perguntar por que Fabrício Queiroz botou dinheiro na conta da primeira dama.

A piada de conotação sexual do mesmo presidente feita para uma criança, uma menina, durante uma live. Como aconteceu em outros discursos incompatíveis com o estágio civilizatório contemporâneo, não sofrerá nenhuma punição legal.

O ataque às artes. Extinção do Ministério da Cultura. Criminalização da atividade artística. Achincalhe a um patrimônio cultural da dimensão de Fernanda Montenegro por uma eminência nula.

O elogio da ignorância. A afronta à ciência. Defesa cega de uso de remédios sem comprovação científica de sua eficácia, ao contrário, com evidências de sua inutilidade. O mais triste – com a conivência de médicos.

A Amazônia em cinza. E a reação do governo é veicular um vídeo mostrando uma suposta floresta preservada. Só que nas imagens aparece um mico-leão-dourado, espécie endêmica da Mata Atlântica. Assim, ou o vídeo é uma fraude ou o governo baixou um decreto alterando o habitat do mico-leão-dourado.

Otimista até sem razão, o velho professor consola a si mesmo:

— Não é o Brasil, são só alguns brasileiros.

E dá exemplos históricos. O Nazismo não é os alemães nem o Fascismo, os italianos. Como os supremacistas brancos não são os americanos. A despeito dessas chagas, esses povos têm construído maravilhas do processo civilizatório. De obras intelectuais a pizza. De máquinas a vacinas. Mas, com uma nota de pessimismo, conclui:

— Está certo que não é o Brasil, são só alguns brasileiros. Mas o risco é de que esses alguns brasileiros se tornem mais poderosos que o Brasil.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sábados.

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Foto destaque: micoleao.org.br