Mantenha a grama verde
*Arnaud Mattoso
Em 30.09.2020
Desde sempre os meninos grandes da rua de cima são os donos do campinho de futebol do bairro. Eles mantêm a grama verde e o clube funcionando, mesmo com falhas no gramado. Os meninos pequenos da rua de baixo também querem jogar no campinho. Há décadas eles pressionam, mas os meninos da rua de cima são durões. Aguentam pressão. O secular cacique da tribo com a moral de imortal acadêmico e o poder de um marimbondo de fogo, vaticinou que a troca de guarda seria interessante para os negócios. “Vamos arrendar. Abrir a franquia. Deixá-los administrar o campo. As partidas e o gramado. Partilharemos da gestão. Assumimos a vice-presidência, os conselhos, as diretorias e as comissões sobre a renda dos jogos. Vamos deixá-los na linha de frente por um tempo. Se temos que passar por isto, que seja logo”.
Assim o fizeram. Os meninos grandes da rua de cima liberaram o campo para os garotos inexperientes e barulhentos da rua de baixo. Eles usavam calça curta. Andavam de chinelas. Bonés virados para trás. Camisetas vermelhas com fotos de rosto de ídolos e frases de efeito. Os experientes permitiram aos novatos que ocupassem o campo com o time completo: jogador, técnico, gandula e até o árbitro. Os donos do campinho exigiram participação nos lucros das entradas dos jogos. Contrato assinado com apertos de mãos. Risinhos, jantares e tapinhas nas costas. Os ex-rivais compartilharam por treze anos do campo que floresceu nos primeiros anos.
Tudo parecia em paz no reino do campinho de grama verde e das comissões compartilhadas pelos dois grupos. Entre tapas, socos, beijos, segredos e pedidos de desculpas sobreviviam às diferenças sobre a gestão do latifúndio. Com as mensalidades pagas em dia e os cargos ocupados pelos meninos grandes, eles superavam as divergências. O problema aconteceu no oitavo ano da gestão. Os garotos inexperientes passaram a cometer faltas, pênaltis, escanteios e golpes abaixo da cintura. Só faziam o que queriam. Tornaram-se rebeldes.
O maior desastre ocorreu ao trocarem o comando do campo sem consultar os donos do campinho arrendado. Os pequenos entregaram a gestão para uma garota estranha e mal-humorada. Era a primeira vez que o campinho tinha uma chefa. Ela não sabia se relacionar com os antigos donos. Não era amigável. Falava mal deles. Não socializava. Não interagia. Não tomava uma cerva com espetinho depois dos jogos. Ainda criou conflitos com o próprio time já arrependido da escolha.
O cartão amarelo foi usado diversas vezes para avisá-la sobre a temeridade dos delitos em campo. O novo velho cacique do grupo de meninos graúdos enviou uma carta bem redigida de alerta à nova gestora sobre a insatisfação de não participar das decisões. O texto de palavras difíceis, português rebuscado e linhas bem elaboradas vazou. Os torcedores souberam que a relação entre eles azedara. O rompimento era iminente. O campo passou a dar prejuízo. A chefa subsidiou a entrada para os jogos. Distribuiu benesses e bolsas da língua francesa sem se preocupar com o equilíbrio entre arrecadação e despesa. A receita caiu.
Acabaram-se os recursos para manter o campo organizado com trabalhadores para cuidar da grama. Começou também a faltar dinheiro para a turma da rua de cima. “Houve quebra nas regras e nas cláusulas do contrato firmado entre às partes”, explicou o solene cacique jurista gesticulando as mãos para fortalecer a sua fala. Dirigindo o olhar de raposa à plateia, bradou: “rompê-lo-ei”. Um velho e experiente vassalo de cabelos brancos, cara de gato angorá e ares de todo poderoso articulador de causas impossíveis, resgatou uma frase do passado para repercutir a decisão do líder: “vamos fazer deste campinho uma democracia”.
O rompimento entre a turma de cima e a de baixo não foi simples. Embriagados pelo poder de domínio sobre os jogos e embalados pelos gritos de guerra dos torcedores, os meninos da rua de baixo seguraram a devolução do campo até à última trincheira. Ocuparam o lado esquerdo do campo e atiraram pedras nos golpistas que lhes roubavam o campinho. A reunião para votar o novo comando de campo varou a madrugada. Os conselheiros discursaram sobre a matéria com acusações de ambos os lados. Houve mortos e feridos. De caciques a gandulas, nem o árbitro escapou. Da moça da bilheteria que recebe o dinheiro das entradas até o contador que faz a folha de pagamento. Nem os patrocinadores dos banners e spotlights ao redor do campo livraram-se das pedradas.
Depois de socos, pontapés, murros, cotoveladas e tapas os meninos da rua de cima tomaram o campinho de volta. “O jogo precisa continuar independente dos conflitos sobre o domínio do campo. Os recursos do clube não podem parar. Administrá-lo-ei”, decretou o líder empossado após a tomada de poder. O estrago foi tão grande que o verde da grama secou. Transformou-se em um imenso campo marrom. O pessoal da manutenção e do serviço geral foi demitido. Faltou mão de obra para regar e adubar o gramado.
O meio de campo tornou-se perigoso. Era arriscado permanecer entre as equipes rivais. O público torcia cada qual pelo seu time. O jogo que deveria ser jogado ficou em segundo plano. A deterioração do campinho foi tão grave que consultorias organizacionais de controle foram chamadas para julgar as brigas e ajudar na gestão. Os consultores de coach aplicaram as ferramentas de desenvolvimento pessoal e profissional. A equipe econômica chamada para consertar os erros da chefa deposta seria comandada por um senhor de alta patente, onde não havia dúvidas sobre a sua capacidade administrativa.
Ele não se envolveria na briga entre os meninos da rua de cima e a de baixo. Manteria as contas em ordem para que o campinho se recuperasse. Em um ano apresentou resultados ao velho cacique que se encontrava na maior batalha de sua vida. O experiente líder que assumira o poder se envolveu num crime ambiental e tributário. A polícia descobriu que ele mantinha passarinhos em cativeiro e os alimentava com alpiste comprado sem nota fiscal. Foi pego numa conversa gravada tarde da noite com o fornecedor da ração, ambos escondidos num galinheiro. A tramoia envolvia agentes públicos da fiscalização. Só o alento de sua jovem esposa e o amor do seu pequeno filho o consolava de tamanha pressão. A família é tudo para ele.
Quando o consultor apresentou os números da melhoria na crise econômica do campinho e a contratação de novos funcionários, o cacique sorriu e promulgou que não renunciaria. Até planejou ficar na função por mais um mandato. As melhoras na gestão eram o seu trunfo. “Esfregá-lo-ei nas ventas dessa gente”. Mas o estrago estava feito na percepção do torcedor que acompanhava aturdido à guerra dos homens sórdidos. A impopularidade era o ponto fraco do cacique. Mesmo com o gramado do campo voltando a ficar verde.
Garoto é garoto, moleque é moleque. A turma da rua de baixo torcendo pelo quanto pior melhor. Sem nada a perder aproveitou a fraqueza do líder da rua de cima para jogar tijolos e vidros com coliformes fecais. Os moleques criavam desordem em dias de jogos. Invadiram instalações. Quebraram privadas. Explodiram portas. Fizeram barulho e queimaram pneus para chamar a atenção dos torcedores no meio do tiroteio entre os rivais. Reconquistar o latifúndio era missão impossível aos meninos miúdos, pois só lhes restara uma bala com pólvora molhada.
O eterno e único líder do grupo da rua de baixo foi abatido pelos consultores de coach. Eles desconstruíram a sua gestão e da sucessora com base em notas fiscais adulteradas usadas para encobrir o desvio de recursos das entradas, a compra ilegal de imóveis e favorecer patrocinadores. Os meninos da rua de baixo estavam desesperados. A auditoria dos consultores descortinou impostos não contabilizados e o enriquecimento ilícito dos gestores do campinho. As convicções vieram com as provas e foram distribuídas à imprensa e aos torcedores num Power point por um agente da fiscalização de campo junto a um grampo telefônico entre os chefes rivais do velho cacique.
Os garotos da rua de baixo se descuidaram das finanças. Deixaram a grama secar e o campinho se deteriorou. A cobrança pelos danos chegou às últimas instâncias da Justiça. Era iminente a derrota do líder dos garotos de bermuda, bonés e camisas com frases de efeito. A briga entre os rivais pelo latifúndio parecia não ter fim. Os torcedores esperavam nas arquibancadas com os ingressos nas mãos. Alguns torcedores sem algo melhor a fazer digladiavam-se em suas preferências. Amizades foram desfeitas. Narrativas foram construídas sem pé na realidade dos fatos. Palavras ofensivas foram proferidas ao sabor dos ânimos exaltados. Enquanto a guerra dos homens sórdidos ocorria, o campo continuava à espera do desfecho da batalha final. Os trabalhadores precisavam voltar ao campo. Era preciso continuar a labuta de manter a grama verde e cuidar do patrimônio dos torcedores, a quem o campo de verdade pertence.
*Arnaud Mattoso é jornalista e escritor.
Foto destaque: portalsete.com.br