A pornografização do amor como mercadoria do capitalismo

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 30.09.2020

A saga do capitalismo em transformar tudo e todos em mercadoria vai concretizando a eliminação da alteridade, pois é preciso impor de forma desenfreada a lei do consumo.  Com isso, vamos perdendo a condição de encontro com o outro ser humano e da reciprocidade de nossas humanidades. O neoliberalismo, ao instituir a sociedade do desempenho, estabeleceu uma quebra dos vínculos de um sujeito com outro, forjando um ser narcisista que não consegue mais se encontrar no outro e, por isso, se isola e se consome em si mesmo. Essa quebra de relação e de alteridade com o outro, vai comprometendo mais agudamente a relação humana porque vai se configurando em uma relação marcada pelo ter e, consequentemente, numa relação de poder.

Esse processo marcado pelo desempenho e pelo poder vai atingir de forma letal a dimensão do eros, que expressa, fundamentalmente, uma relação marcada pelo encontro com o outro. Qualquer relação marcada pelo poder interdita a viabilidade do eros. A sociedade capitalista transformou a erótica em um produto de consumo e todo consumo é marcado por uma relação de poder e, dessa forma, a positividade que incidiu na sexualidade, transformou o sexo em mero produto de consumo. O eros é uma relação que se opõe aos mecanismos neoliberais de transformar tudo em consumo, na medida em que quebra a relação caracterizada pela troca, pois marca uma relação essencialmente assimétrica. (HAN, 2017, Agonia do Eros, Vozes).  Isso quer dizer que a relação do eros é marcada por um pleno reconhecimento das diferenças e das singularidades de cada ser humano. A relação do eros é marcada pela alteridade.

O capitalismo pornografizou a sociedade na medida em que transformou tudo em mercadoria. A pornografia é uma forma de extinguir a sedução erótica. Ela toma forma a partir do momento da exposição desmedida e do desnudamento total, eliminando, dessa forma, qualquer possibilidade do mistério e do sublime. O obsceno é o que está exposto ao holofote e valorado apenas pelo seu valor expositivo. A mercadorização do corpo é o que importa no capitalismo, por isso é fundamental a sua hipervisibilidade. Desse modo, é preciso acentuar a pornografização da sociedade como forma de acentuar também o consumo da pornografia, e por essa razão, o corpo precisa ser descaracterizado do seu dono, despersonificado, desumanizado – no sentido de (re)tirar qualquer traço de humanidade – para ser apenas um objeto. Por isso, “O capitalismo não conhece nenhum outro uso da sexualidade” (HAN, 2017, p. 58) – Sociedade da Transparência, Vozes –, apenas a pornografia lhe interessa.

O erótico não é pornográfico. O que caracteriza o erótico é a sua capacidade de diálogo. O erótico cria uma abertura dialógica e, por isso, é capaz de enxergar o outro em sua alteridade. A pornografia é antidialógica, vai direto ao assunto, não tem desvios, elimina mistérios e sua modalidade temporal é a hiperaceleração. O filósofo Byung-Chul Han afirma em seu livro A Salvação do Belo (2019, Vozes) que tanto emoções como afetos não desenvolvem um espaço narrativo e que apenas sentimentos são narrativos. Para ele, sentimentos se distinguem porque expressam outra temporalidade, possuem uma duração. Segundo seu pensamento, “Emoções são essencialmente mais fugazes do que sentimentos. Afetos são restritos a um momento. E apenas sentimentos têm acesso ao dialógico, ao outro. Por isso existe a compaixão. Emoção-com ou afeto-com, em contrapartida, não existem. Tanto afetos como emoções são expressão de um sujeito isolado, monológico” (HAN, 2019, p, 94).

A pornografia é calculista, pois ignora qualquer possibilidade de distração que reside no erótico, ao contrário disso, ela vai sem rodeios, encurta o caminho e vai direto ao ponto. Para ela só há um foco: o sexo. Por isso ela se opõe ao belo. O erótico se encontra no belo na medida em que não se desnuda em vitrines como se fosse uma peça a ser comercializada. A essência própria da pornografia é o seu caráter de revelação, de se mostrar, de se desocultar e de se exibir como quem se oferta. O pornográfico exige luzes. O erótico não se expressa pelo desvelamento gratuito, mas pela sutileza nos seus movimentos que podem ser comparados aos movimentos das ondas, que em seu fluxo e refluxo, envolvem mistérios e segredos, numa troca perfeita de dar e receber. A pornografia segue em sentido oposto e ao desnudar o corpo, desnuda a alma e nesse movimento também esvazia o sujeito e, dessa forma, pornografiza o amor.

O pornográfico é vazio de uma necessária distância indutora da sedução. Sem essa distância não há sedução, pois toda negatividade que gera atração é eliminada, nisso o outro também é eliminado e a relação que se estabelece, nesse caso, está no âmbito do que Martin Buber denominou de EU-ISSO, ou seja, uma relação que se concretiza pela coisificação do outro, pois se torna esvaziada de diálogo, e o outro não passa de um mero objeto. Para o pornográfico o que importa é a exposição. Han (2017, p. 33, Sociedade da Transparência) diz que “A coação expositiva leva à alienação do próprio corpo, coisificado e transformado em objeto expositivo, que deve ser otimizado”. Na sociedade expositiva, como afirma Han (2017), cada sujeito termina virando seu próprio objeto-propaganda, isso porque tudo é quantificado pelo seu valor expositivo. O imperativo da exposição de forma excessiva coloca tudo na vitrine e mercadoriza todas as relações, por essa razão, o movimento é sempre para fora, é preciso impor o desvelamento, o desnudamento, a hipervisibilidade. O pornográfico anula o eros e o sexo e, por conseguinte, instala a alienação do prazer. O que resta de saldo nesse processo de coação expositiva é a pornografização do amor como mercadoria do capitalismo.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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