SALA DE CINEMA – ‘Blade Runner’: um clássico cada vez mais atual

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 04.10.2020

Lançado em 1982, Blade Runner foi um filme que não agradou de cara o grande público nos cinemas, resultando em uma bilheteria aquém do esperado. A crítica teve uma visão dividida, com alguns rejeitando-o e outros enaltecendo as qualidades do filme e enxergando elementos inovadores e revolucionários na obra. O tempo tratou de dar razão a estes, com o filme se tornando um clássico da história do cinema. Isso ocorreu também por conta das diversas versões lançadas (o filme possui sete versões diferentes, com a definitiva sendo lançada 25 anos depois do seu lançamento, em 2007) em VHS e DVD pelo seu diretor, Ridley Scott, e pelos produtores nas décadas seguintes e que fez o filme ser revisitado e redescoberto por críticos e cinéfilos ao longo dos anos.

O filme é uma adaptação livre do romance “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”, de Philip K. Dick, escritor norte-americano de ficção científica. Essa foi a primeira obra literária de Dick adaptada para o cinema, o que trouxe um enorme reconhecimento ao seu trabalho que posteriormente foi adaptado para as telas em dezenas de outros filmes e séries de TV (O Vingador do Futuro, Minority Report, O Homem Duplo, Os Agentes do Destino e O Homem do Castelo Alto são alguns exemplos) disseminando ainda mais sua obra. Esses holofotes fizeram de Dick o escritor mais influente e aclamado da ficção científica na segunda metade do século passado. Tendo como tema principal a busca pelo que define o que é um ser humano e o que é realidade, seus escritos foram vistos por pensadores como Jean Baudrillard, Fredric Jameson e Slavoj Žižek como um prenúncio sobre questões que seriam abordadas na pós-modernidade. Infelizmente Dick morrera três meses antes do lançamento de Blade Runner e não foi capaz de presenciar o impacto gigantesco de sua obra no mundo.

O ano que a história de Blade Runner ocorre é 2019 e nesse “futuro” a Terra já está quase toda degradada pela ação humana. Os animais estão praticamente extintos e foram substituídos por animais sintéticos, a flora é artigo de luxo. A humanidade vive amontoada em grandes metrópoles, já que boa parte do planeta está contaminado por radiação de bombas nucleares. Enquanto isso, os mais ricos migraram para outros planetas e para auxiliar na acomodação e construção de colônias fora da Terra foram criados replicantes, imitações de humanos geradas artificialmente por meio de engenharia biológica que vivem por apenas quatro anos e são tratados como mão de obra escrava pelos humanos. Um grupo desses replicantes, liderados por Roy Batty (Rutger Hauer), foge das colônias para a Terra em busca de Tyrell (Joe Turkel), criador e dono da empresa fabricante dos replicantes, para pedir por mais tempo de vida. Cabe ao policial especializado em “aposentar” replicantes, Rick Deckard (Harrison Ford), a missão de encontrar e dar fim a esse grupo.

Blade Runner é visto acima de tudo como o precursor e principal representante no cinema do subgênero da ficção científica conhecido como cyberpunk. O cyberpunk imagina um mundo com um alto desenvolvimento tecnológico e um baixo desenvolvimento social. Um mundo distópico onde, por conta dos avanços tecnológicos nas áreas de tecnologia da informação ou bioengenharia e um consumismo desenfreado, as megacorporações são tão poderosas que passam a ser as definidoras absolutas do destino da sociedade, restando as grandes massas se virar entre a abundante miséria de uma natureza decadente e fragmentos de um mundo artificial em uma realidade composta por simulacros.

É na maneira que Ridley Scott cria esse mundo que reside uma das genialidades de Blade Runner. Por meio de uma rica direção de arte, Scott cria uma Los Angeles escura e úmida de ruelas abarrotadas por pessoas de variadas etnias, falando idiomas diferentes, como uma Torre de Babel, onde a chuva e uma fumaça não cessam, passando uma sensação incômoda de sufocamento e decadência. As propagandas em luz neon, outdoors e os dirigíveis com fortes refletores estão presentes em todos os espaços evidenciando o hiperconsumismo daquela realidade e criando um paradoxo de uma sociedade em condições precárias, mas que mesmo assim vive para consumir. A bela trilha sonora, composta por Vangelis, também chama atenção pelo poder de imersão criado pelos sintetizadores que reforçam a artificialidade do que vemos.

O contraste do cyberpunk também fica bem nítido ao observar o modo como o ambiente urbano é retratado, sempre poluído e desolador, onde predomina um azul frio de uma noite iluminada por neons melancólicos, em comparação às cenas na corporação detentora do conhecimento biogenético, Indústria Tyrell, um ambiente grandioso e belo, divino até, onde predomina um amarelo morno de um sol de fim de tarde. Ridley Scott filma de tal maneira que fica claro que estamos vendo dois mundos totalmente distintos.

Junto a tudo isso ainda temos a apropriação do estilo dos filmes noir como principal ingrediente na construção da sua estética. O noir foi caracterizado pelas tramas de investigação obscuras que revelam o lado sujo do mundo, com protagonistas — muitas vezes detetives ou policiais — cínicos e violentos e femme fatales que convivem em um submundo urbano de crime, o uso extremamente expressivo e contrastante da luz e da sombra aliados a um rigor técnico nas suas composições visuais que buscavam produzir um forte impacto dramático nas cenas por meio de valores estéticos. Todos esses elementos estão presentes em Blade Runner.

Enquanto os principais filmes de ficção científica da época eram aventuras animadas e pra cima (a primeira trilogia Star Wars, E. T.: O Extraterrestre), Blade Runner mesclava a ficção científica com os filmes noir (esse estilo vai ser chamado de tech-noir) em um ritmo mais lento e contemplativo para criar um filme que expunha dúvidas sobre o desenvolvimento tecnológico e a radicalização do capitalismo capitaneados pelos governos neoliberais de Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher no Reino Unido e para onde tudo isso pode levar a humanidade. Questões que parecem ficar ainda mais evidentes com o passar dos anos.

Até agora falei apenas da ambientação e da construção de mundo do filme, mas tem outro aspecto que o filme coloca como central na sua trama, um aspecto filosófico que diz respeito à natureza do ser humano.

Nesse mundo governado pela tecnologia, onde é possível criar seres idênticos aos humanos, onde memórias são implantadas na mente de replicantes para que eles não saibam sua real origem, a própria fronteira do conceito do que é humano mostra-se frágil. Conforme a ciência avança, principalmente as biológicas, que procuram decifrar o ser humano, pensamentos sobre a dignidade da vida, ou até mesmo a sacralidade do humano vão sendo questionados.

No filme os replicantes fogem para a Terra à procura do seu criador para suplicar por mais tempo de vida. Isso significa que eles, assim como nós, rejeitam a morte; inclusive, a própria fuga também pode ser vista como a presença de um livre arbítrio nos replicantes. Então, o que realmente diferencia os seres humanos dos replicantes? É o fato deles serem gerados artificialmente? Em que a réplica difere do original? E se memórias forem implantadas neles para pensarem que não são replicantes, mudaria algo? É correto criar um ser com uma função, um destino já estabelecido? E a mais reveladora de todas: o que constitui um autêntico ser humano?

*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.

Foto destaque: take.com.pt