Políticas europeias de contenção degradam a vida humana em campos de refugiados

Por

José Ambrósio dos Santos*

Em 13.10.2020

Há pouco mais de um mês, no dia 08 de setembro, o mundo ficou chocado com o incêndio que atingiu o campo de refugiados de Moria, na ilha de Lesbos, na Grécia. O acampamento foi quase totalmente queimado, jogando cerca de 12 mil pessoas (homens, mulheres e crianças) nas ruas, sem ter onde ficar.

Foto: MSF

Chocante, revoltante e inaceitável é também a situação vivida no campo de Vathy, na ilha grega de Samos, como denuncia o coordenador-geral do projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Vathy, Iorgos Karagiannis.

Segundo ele, a Europa escolhe conscientemente a tragédia em curso no seu solo. Ressalta que para conter a movimentação de pessoas em migração e atender a uma necessidade “mal definida” de proteger suas fronteiras, a União Europeia usa e abusa de um senso de urgência e desastre para justificar mais restrições às liberdades humanas. “A Europa está institucionalizando a degradação humana, sistematizando a contenção e a dissuasão. Ao fazer isso, está gerando um padrão de destruição e desespero”, adverte.

Confira o relato de Iorgos Karagiannis sobre como está a situação dos migrantes e solicitantes de asilo na região:

“‘Não queremos ver um novo Moria novamente’ foi a reação instintiva dos líderes europeus após o incêndio que devastou o Centro de Recepção de Moria na ilha grega de Lesbos, três semanas atrás. O desastre em Moria não foi surpreendente. Foi a consequência fatal, e infelizmente inevitável, das políticas de dissuasão e contenção da União Europeia (UE), que criaram os campos superlotados e com poucos recursos nas ilhas do mar Egeu. A UE implementou essas políticas a qualquer custo e por qualquer meio, independentemente do sofrimento que causam.

A política de conter os solicitantes de asilo que chegam à Europa e dissuadir outros de fazerem a viagem dará sempre origem a novos ‘Morias’. É conveniente para os líderes da UE mudarem de direção, até que um incêndio como o de Moria os faça sentar, prestar atenção e administrar publicamente sua culpa, geralmente com a promessa de realocar algumas dezenas de crianças ou enviar dinheiro e outros tipos de assistência.

Lesbos já tem o seu novo Moria, na forma de um acampamento improvisado que acolhe 10 mil pessoas, enquanto ‘Morias’ continuam a existir em outras ilhas gregas, onde milhares de pessoas ficam indefinidamente presas todos os anos.

O mesmo ciclo de miséria em Samos

Na ilha de Samos, qualquer pessoa forçada a viver no centro de acolhimento de Vathy adoece, corre perigo todos os dias e é forçada a sobreviver sem nem mesmo ter os suprimentos básicos. Sua única esperança continua sendo um pedido de asilo que pode levar meses ou até anos para ser considerado, com poucas chances de ir em frente e sem qualquer promessa de integração, mesmo que seu pedido de asilo seja eventualmente reconhecido.

Essa é a experiência de quem procura as creches de MSF em Samos. Oferecemos atendimento médico básico, mas sabemos que, quando eles retornarem aos seus abrigos lotados, serão atormentados novamente, adoecerão devido às condições miseráveis ​​em que são forçados a viver e se desesperarão. Essa realidade é conhecida das autoridades gregas, dos dirigentes europeus e dos mecanismos financeiros que a permitem. Os solicitantes de asilo e refugiados detidos nas ilhas gregas continuam excluídos e invisíveis porque é isso que funciona melhor para a política de migração da UE.

A única altura em que se tornam visíveis é quando são apontados como criadores de problemas, como perigos para a saúde pública ou como beneficiários da ajuda da UE.

Alguém realmente acredita que gerir a chegada de solicitantes de asilo e refugiados está além da capacidade dos Estados europeus? Por anos, as equipes de MSF em Samos e Lesbos presenciaram e trataram o sofrimento incomensurável produzido por essas políticas. Temos evidências de que o sistema existente e as políticas de dissuasão e contenção causam danos sistêmicos e desespero, e destituem a dignidade humana inata daqueles que estão envolvidos neles. Os centros de recepção nunca foram seguros e as pessoas que vivem neles nunca tiveram acesso adequado aos cuidados de saúde. A dignidade humana é algo que a Europa retirou dos que estão presos nas ilhas.

COVID-19 em Samos

Em Samos, hoje há cerca de 4.500 pessoas presas em Vathy – um campo que tem capacidade para 650. Entre elas estão crianças, pacientes com problemas crônicos de saúde e pessoas cujas vidas estarão em perigo se expostas à COVID-19. Com a pandemia, essas pessoas estão em perigo real, e o que é pior, ainda não há um plano de resposta médica claro por parte das autoridades.
MSF fornece a maior parte da água potável e banheiros na área ao redor do centro de recepção oficial. O atendimento médico para as pessoas mantidas no campo depende quase exclusivamente de organizações humanitárias e de alguns funcionários públicos que ficaram meses sem qualquer apoio de seu governo.

Neste ano de COVID-19, o plano para Samos é o mesmo de qualquer lugar envolvendo centros de recepção: quarentena e isolamento. Todos os outros problemas que coexistem não dizem respeito a ninguém: dor acumulada, exposição ao perigo, falta de direitos, exclusão e o medo constante de ser esquecido em um centro fechado que manterá as pessoas trancadas em condições miseráveis.

A Europa escolhe conscientemente a tragédia em curso no seu solo. Para conter a movimentação de pessoas em migração e atender a uma necessidade mal definida de “proteger” suas fronteiras, a UE usa e abusa de um senso de urgência e desastre para justificar mais restrições às liberdades humanas. A Europa está institucionalizando a degradação humana, sistematizando a contenção e a dissuasão. Ao fazer isso, está gerando um padrão de destruição e desespero.”

Foto: Enri CANAJ/Magnum -Acampamento recém-construído após incêndio em Moria já conta com 7.500 pessoas vivendo em condições desumanas

O relato de Iorgos Karagiannis publicado no dia 29 de setembro é confirmado em reportagem de MSF do dia 08 de outubro. Naquele dia, um mês após os incêndios que destruíram o campo de refugiados de Moria, e apesar das promessas públicas dos comissários da União Europeia (EU) de que “não haveria mais Morias”, mais de 7.500 pessoas ainda estão presas em condições desumanas em um acampamento recém-construído em Lesbos. Outros milhares, incluindo 7 mil crianças, continuam a viver em outros campos indignos e inseguros nas ilhas do mar Egeu.

Mais de meio milhão de pessoas assinaram petições que apelam aos líderes europeus para que evacuem as pessoas presas nas ilhas gregas e ponham fim às políticas de contenção que têm causado esse ciclo de sofrimento e abusos. O novo Pacto de Migração da Comissão Europeia, apresentado há duas semanas e em discussão no Conselho de Justiça e Assuntos Internos, não responde a essas exigências e, em vez disso, reafirma o compromisso dos governos e das instituições europeias com as mesmas políticas que precipitaram os incêndios.

José Ambrósio dos Santos é jornalista e membro da Academia Cabense de letras.

Foto destaque: Valeska Cordier / Médecins Sans Frontières – Ilhas de Lesbos e Samos abrigam campos superlotados para migrantes e solicitantes de asilo