Parado no sinal

Por

Jénerson Alves*

Em 16.10.2020

Dez horas da noite. Talvez um pouco mais ou um pouco menos. O semáforo vermelho no cruzamento o faz frear o carro, mas seus pensamentos continuam acelerados. Enquanto mira o sinal de trânsito, depara-se com outro sinal, ortográfico, na placa ao lado, indicando o caminho para os bairros nas proximidades. Lê: CAÍUCA. Por um momento, desconfia dos próprios olhos. Fecha-os e abre-os em seguida. Limpa-os. Confere. Sim. CAÍUCA. O erro está em um acento, e não é simples. O bairro chama-se CAIUCÁ. Alguém já o dissera que a origem é por causa de uma certa fábrica que havia no local, que emitia uma certa fuligem, e as pessoas passaram a dizer que ali “cai o cal” – com o passar do tempo, “Caiucá”. Interessante como por aqui não se vê ninguém falando em “a cal”, como recomenda a norma culta. Neste caso, a norma culta é bem esquisita, mesmo. “Cal” não parece ser palavra feminina. Agora, “mar”, sim. Que bom seria se chamássemos o mar como os nossos irmãos de fala hispânica – “la mar”… E que bom seria se aqui em Caruaru houvesse mar! Quem sabe algum desses políticos faça alguma promessa assim… já prometeram tanta coisa mirabolante, mesmo! Não fazem, mas prometem…

Sim; voltemos à placa. A palavra é “Caiucá”, oxítona terminada em “a”. Do jeito que grafaram na placa, até pronunciar é difícil. Ela ‘virou’ proparoxítona. E não há muita explicação para isso. Se o acento fosse no “u”, que é hiato, até daria para entender, mas no “i”, logo no ditongo decrescente… Oxe! Vontade de pegar uma tinta e corrigir este negócio!

Quem tinha esse mesmo tipo de vontade – de corrigir tudo o que via de errado – era ela. A garota lá do Bairro Santa Rosa, que dizia que o amava, mas hoje sequer pronuncia o nome dele. Não que ele sinta saudade dela, apenas se lembra que não pode mais vê-la. Quando ela ri, os olhos dela ficam puxadinhos, parecendo olhinho de japonesa. Ele achava tão bonitos… Hoje os olhos dela não querem vê-lo, e ela ri para outro sujeito. Ele não tem predicados para estar com ela, e sentiu-se como um mero objeto indireto, separado por preposição. Ou, pior! Ele é aquele acento! Sim, o acento da placa. Sem pé e sem cabeça. No local errado. Do jeito errado. E à vista de todo mundo!

Balbucia: “Esta é a metáfora mais idiota que já pensei!”. Ele tem razão. A metáfora é idiota. Ele também é. A vida é idiota, às vezes. É aquele sentimento de estar deslocado, sobre o qual Albert Camus tanto escreveu. É se sentir um Gregor Samsa, da obra de Kafka. Estrangeiro. Inseto. Esquisito. Aí a gente exclama feito Drummond: “Eta vida besta, meu Deus”. Vanitas Vanitatum. A vida é besta, mesmo, é idiota. Mesmo assim, devemos ser gratos por ela. Um saco de lixo voa, tangido pelo vento. Parece cena de filme.

Quantos pensamentos aleatórios podem surgir no tempo de um sinal vermelho!

Abre-se o semáforo. Ajeita-se no assento do automóvel. Quem sabe algum dia ele se sinta no local certo, do jeito certo, fazendo a coisa certa? Não mais um acento errado, mas no assento correto! Engata a primeira. Segue em frente.

*Jénerson Alves é jornalista e membro da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel. Escreve às sextas-feiras.