Contadores de histórias

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 16.10.2020

Narrativas sobre si são uma busca de compreensão interior. Quando falamos de nós estamos construindo pontes humanas. Escutar os dilemas das pessoas, suas dores, alegrias e trajetórias é um ato de generosidade e amor. Ao ser escutado, o ser humano passa a pertencer, a ser cuidado, amado. A escuta nunca é unilateral. Na escuta, se estabelece uma relação dialógica. Escutar com o coração nos humaniza, cura. A linguagem do coração é atenta, cuidadosa, amorosa, acolhedora. Não precisamos concordar com tudo, mas devemos ser afetuosos, apoiadores, utilizar uma linguagem que dialoga com o olhar, com o pulsar do coração.

O ato de narrar histórias de si é transcendente, não sabemos por que falamos determinadas coisas, pois o dito é muito profundo quando se resolve compartilhar algo com seus pares. E aquele que escuta disponibiliza o seu tempo existencial para acolher o outro numa celebração da vida e do amor. Escutar uma pessoa é muito mais do que ouvir. É quando os sentidos – de ambos – e os sentimentos se encontram e se acolhem incondicionalmente. É quando aquele que narra sente-se apoiado e não julgado. O que escuta, mesmo discordando, pode ter um olhar, um sentimento de amorosidade e acolhimento, sem censura. O que importa no momento da escuta é o sentimento empático de compreender o outro nas suas possíveis falhas, arroubos, equívocos, dores, mas também nas alegrias, conquistas, ou seja, estar receptivo para escutar com os olhos do coração.

 

Ao definirmos o outro nos colocamos numa relação assimétrica, vertical, hierárquica.

Não nominar o outro, não rotular, não tentar defini-lo é um ato de humanidade. É arbitrário pretender dizer o que a outra pessoa é. Nós não temos nem como nos definir, pois assumimos diversos ethos, ocupamos tantos papéis, funções e identidades, somos múltiplos. E em constante aprendizagem. Ao definirmos o outro nos colocamos numa relação assimétrica, vertical, hierárquica. A ética da alteridade nos ensina que devemos olhar o outro numa perspectiva humanista que consiste em uma relação de iguais. Nessa relação de alteridade, devemos considerar e reconhecer as singularidades da outra pessoa como inerente à condição humana. Nunca saberemos o pensar e sentir do outro. Dessa forma, não podemos julgá-lo. De modo assertivo, segundo premissa atribuída a Voltaire, o ápice da empatia e da alteridade que o ser humano precisa experienciar com mestria: “Eu discordo do que você diz, mas vou defender até a morte seu direito de o continuar dizendo.”  Com isso, sabe-se que as ações são partes do fazer humano, mas não são o bastante para definir o outro. As subjetividades são um terreno superposto, profundo, multifacetado que o outro não consegue penetrar, apenas pode escutar parte desse mundo numa escuta amorosa e cuidadosa.

Quem não se deparou numa conversa em que o seu interlocutor diz algo sobre você que não reconhecemos?

A canção e o apelo da alma são expressos nas narrativas de si. Uma forma de entendermos e adentrarmos nos recantos da existência humana é aprendermos a escutar o suspiro do outro, ouvir o seu dito, fazer a escuta atenta em uma experiência compartilhada. Na sociedade contemporânea, o tempo é concebido e avaliado, comumente, pelo que se produz e o que se lucra em termos socioeconômicos. Assim, é possível que muitos achem perda de tempo parar e escutar outro ser humano. Passar pela vida e vivê-la para muitos se resume apenas em amealhar bens, acumular coisas, títulos, cargos, funções, em detrimento de enxergar o outro ser humano e buscar entendê-lo, bem como, compreender o que viemos fazer no planeta azul. É por meio do outro que encontramos nossas humanidades. Quem não se deparou numa conversa em que o seu interlocutor diz algo sobre você que não reconhecemos? Que aquilo que o outro conjecturou e pensou sobre você não faz sentido, que para você o sentimento foi outro, o pensamento, também, foi outro?

É coerente e prudente, penso, não julgarmos e nem tentarmos dizer o que o outro é, pensou ou sentiu, pois não é possível. O máximo é termos esse diálogo conosco mesmo. Outra possibilidade é nos disponibilizarmos a escutar o outro amorosamente. A outra pessoa pode, nas suas narrativas, expressar seus pensamentos e sentimentos num elaborar e reelaborar permanente, pois as nossas histórias pessoais são construções sistemáticas e sistêmicas que compõem a tessitura social. Ao escutar a história do outro estamos também escutando parte das nossas histórias. A fragmentação humana, cada um no seu espaço, que ilusoriamente acreditamos existir, faz parte de um quebra cabeça que envolve toda a humanidade. Assim, a perspectiva sistêmica nos ensina que o que incide em um ser humano reflete em todos eles. A violência é um bom exemplo de visão sistêmica. Não se pode avaliar essa questão social de forma isolada do contexto na qual está inserida. As dimensões históricas, culturais, sociais, econômicas, socioemocionais precisam ser consideradas. Mas, uma vez instalada a violência, todos se afetam.

Achei muito significativo o ato de contação de histórias de si. Passei a refletir sobre as histórias de si e percebi que elas trazem muito de nós e do outro.

Essa reflexão tem a ver com a leitura do livro “Mulheres que correm com os lobos”, da analista junguiana Clarissa Pinkola Estés (2014). Os vinte anos de pesquisa da autora me chamou a atenção pela sua trajetória de escuta das histórias de suas pacientes e o quanto essas narrativas têm o poder curador. Ela nos mostra o quanto resgatamos significados e sentidos quando falamos de nós e temos alguém que nos escuta.  Essa experiência da escuta de si e do outro é um resgate das nossas humanidades. A analista junguiana diz que o material mais acessível para a cura humana são as histórias. Ela diz: “as histórias são bálsamos medicinais. Achei as histórias interessantes desde que ouvi a minha primeira. Elas têm uma força! Não exigem que se faça nada, que se seja nada, que se aja de nenhum modo – basta que prestemos atenção. A cura para qualquer dano ou para resgatar algum impulso psíquico perdido está nas histórias”(2014, p.29). Achei muito significativo o ato de contação de histórias de si. Passei a refletir sobre as histórias de si e percebi que elas trazem muito de nós e do outro.

Contar histórias, sentar em roda é uma prática ancestral.

Nunca estamos sozinhos nas nossas histórias, sempre trazemos alguém conosco, alguma coisa, sentimentos que nos alegraram, nos entristeceram, nos fortaleceram, nos fragilizaram, nos dão vida ou mesmo morte; sempre trazemos subsídios para compreendermos a vida. Recordo-me da minha trajetória recente que fui escutada por algumas pessoas. Essa contação de história da minha vida foi extremamente curativa. A nossa dor é aplacada, trabalhada, entendida, acolhida, ressignificada quando somos escutados. Contar histórias, sentar em roda é uma prática ancestral. Realmente é medicinal. É um medicamento poderoso, pois a substância ativa preponderante é o afago humano, o apoio interdependente, a generosidade, a compaixão, a solidariedade, o cuidado humano. Ao contar nossas histórias, para quem se disponibiliza escutar, se busca muitas vezes superar dificuldades naquele ato de compartilhar. A empatia é um sentimento nobre para quem se presta a escutar o outro. A gratidão também é um reconhecimento para aqueles que se debruçam para escutar outro ser humano. Sou eternamente grata àqueles que me escutaram, e continuam me escutando, me dão sopros de vida, sobretudo quando fragilizamos e tropeçamos nos percalços e curvas do caminho. Contar histórias possibilita refazer a nossa caminhada e nos aprofundarmos nos mistérios e meandros do ser. Escutar é aprender fazendo.

Todos nós somos guardiões de histórias, somos patrimônios da vida.

A analista clínica Clarissa Pinkola Estés diz que aprendeu muito com os contadores de histórias, as pessoas recorrem a elas “quando a vida pode se tornar morte e a morte pode se tornar vida a qualquer instante” (2014, p. 31). A autora afirma que há muitas formas de contar histórias. Estudiosos profissionais do folclore, analista junguiano, freudiano, o etnólogo, o antropólogo, o historiador, outros profissionais têm sua estrutura na contação de histórias, e outras pessoas têm seu modo particular de elaborar as suas narrativas. Todos nós somos guardiões de histórias, somos patrimônios da vida.

Ao contar histórias, cantamos e celebramos a vida, ressignificamos nossas trajetórias, nos curamos, escolhemos outra forma de enxergar a nós mesmos, os outros, e a vida. É preciso ensinar às crianças a arte de escutar e a contação de histórias. Nós, contadores de histórias, somos artesãos da nossa existência, tecemos um fio existencial a cada narrativa que fazemos.  Clarissa Pinkola destaca que ao contar e ouvir histórias envolvemos muitas energias e seres nessas tessituras. Diz: “Contar ou ouvir histórias deriva sua energia de uma altíssima coluna de seres humanos interligados através do tempo e do espaço, sofisticadamente trajados com farrapos, mantos ou com a nudez da sua época, e repletos a ponto de transbordarem de vida ainda sendo vivida. Se existe uma única fonte das histórias e um espírito das histórias, ela está nessa longa corrente de seres humanos (p.33). ”

Interessante pensar, como lembra a psicanalista, que nunca sabemos como a história vai acabar. Nisso reside o indeterminismo da vida humana. O mistério, a grandiosidade da vida, as incertezas, o devir. O acontecimento humano estará sempre em construção no refazer e reelaborar das histórias de si e do outro. Nós, contadores de Histórias, aprendamos a escutar a alma humana e observemos o seu hino que poderá potencializar as nossas humanidades. Não por acaso, para finalizarmos essa tessitura em (re) construção, evoquemos João Cabral de Melo Neto em seu poema Tecendo o Amanhã: “Um galo sozinho não tece uma manhã; ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele deu e o lance a outro (…) para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos (…).”

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.