Racismo, pandemia, mortes e esperança

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Por José Ambrósio*

A sexta-feira amanheceu linda, um sol radiante entrava pela varanda me convidando a escrever com alegria, falar de esperança nesses tempos sombrios de pandemia e de intolerância, cheirando a morte. Mirando o Oceano Atlântico, minha mente vaga e em um instante chego à África, terra-mãe de além-mar de tantos irmãos e tantas irmãs das Américas (do Norte, Central e do Sul).

Noutro instante me recordo de George Floyd e logo me vejo no Navio Negreiro de Castro Alves. … Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! / Desce mais … inda mais… não pode olhar humano/ Como o teu mergulhar no brigue voador! / Mas que vejo eu aí… Que quadro d’amarguras! / É canto funeral! … Que tétricas figuras! / …  Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

Desço ao porão com o poeta baiano: … Era um sonho dantesco… o tombadilho / Que das luzernas avermelha o brilho. / Em sangue a se banhar. / Tinir de ferros… estalar de açoite… / Legiões de homens negros como a noite, / Horrendos a dançar…

Homens, mulheres, crianças, o estalar dos chicotes, os gritos lancinantes. Escuto a voz do poeta que, com as mãos estendidas para o céu, clama por justiça: … Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura… se é verdade / Tanto horror perante os céus?! / Ó mar, por que não apagas / Co’a esponja de tuas vagas / De teu manto este borrão?… / Astros! noites! tempestades! / Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!

Passados 132 anos do fim do cativeiro nas Américas, constatamos que as feridas da Escravidão não cicatrizam e sangram todos os dias, açoitadas por racistas por todo o continente americano. Da terra de Martin Luther King Jr., líder negro pacifista abatido a tiro no dia 24 de abril de  1968, a frase cheia de ingenuidade, mas carregada de esperança de Gyanna Floyd, de apenas seis anos de idade, ecoou: “Papai mudou o mundo”, disse a filha de George Floyd, morto asfixiado covardemente por um policial branco no dia 25 de maio, em Minneapolis, EUA.

Atenta aos acontecimentos desde o assassinato brutal do pai, Gyanna vê o mundo inteiro realizando manifestações antirracistas. Nos EUA elas são consideradas as maiores desde a morte de Martin Luther King Jr, prêmio Nobel da Paz que tinha o sonho da união e coexistência harmoniosa entre negros e brancos.

Na Bahia, um dos estados brasileiros que mais receberam escravos, o menino Adriel Bispo de Souza, de apenas 12 anos, sofreu um ataque racista na página do Instagram em que compartilha resenhas de livros. O agressor chamou Adriel de “porco gordo” e afirmou que o menino precisava parar de fazer análises de livros e ir cavar minas, pois era o que “preto e pobre” sabiam fazer. Ele divulgou o ataque e muitos se solidarizaram com o menino. E Adriel foi certeiro na resposta: “Em pleno século 21, pessoas ainda são racistas? Atualizem-se. Insultos acabam com psicológico de pessoas fracas, esse tipo de coisa não me abala em nenhum ponto. Aliás, tenho orgulho de ser negro. Aprende a escrever, cara. Isso não é um insulto, e sim um conselho.”

Que arretado! Nada a acrescentar!

Hoje recebi um poema do amigo jornalista Carlos Sinésio. Uma só estrofe, pois não precisava de mais. O menino Miguel virou anjo / Por certo, foi abandonado / Só, dentro de um elevador / A corte real o deixou de lado / Menino negro, queria carinho / Chorando, perdido e sozinho / Não viu mais o colo procurado. Reflete sobre a morte de Miguel Otávio, menino de cinco anos de idade que caiu de uma altura de cerca de 35 metros de uma das torres gêmeas do condomínio Píer Maurício de Nassau, no Recife, onde a mãe dele, Mirtes Renata, trabalhava como doméstica, na terça-feira (02). Com a pandemia do coronavírus, a creche na qual Miguel ficava não está funcionando e Mirtes o levou para o trabalho.

No início da tarde de hoje, manifestantes pedindo justiça seguiram do Tribunal de Justiça de Pernambuco até as torres gêmeas. Membro da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen), Linda Ferreira disse que o ato é pela dor de cada mãe que enterrou seus filhos, um grito contra a violência policial. Ressaltou não haver no Brasil políticas públicas que garantam a vida dos negros e das negras, conforme registro do G1Pe. Miguel Otávio era negro.

O Grupo de Trabalho Racismo (GT Racismo) do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) divulgou nota afirmando não ser possível desvincular a morte de Miguel Otávio Santana da Silva das circunstâncias do que aconteceu. A mãe da criança, apesar da ameaça da pandemia da Covid-19, foi obrigada a contrariar as orientações das autoridades e se dirigir ao local de trabalho, em companhia do filho, diante da interrupção das atividades de creches e pré-escolas.

E por falar em Covid-19, ele já mata mais de uma pessoa a cada minuto no Brasil. O Ministério da Saúde divulgou ontem o registro de 1.473 mortes por Covid-19 em 24 horas. Situação alarmante, mas que é sempre relativizada pelo presidente Jair Bolsonaro. “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”, disse o presidente a uma apoiadora na manhã da terça-feira (02), quando as mortes pela Covid-19 no Brasil já passavam das 30 mil. Um descaso da autoridade que deveria estar liderando o enfrentamento à pandemia e de quem a população espera no mínimo respeito, solidariedade e palavras de encorajamento e esperança.

Esperança manifestada hoje logo cedo pelo amigo radialista Dudu Lima, do Cabo de Santo Agostinho. O seu irmão França Neto, também radialista, encontra-se internado no Hospital Mendo Sampaio, no Cabo, com diagnóstico de Covid-19. “Deus no controle”, disse. A Secretaria de Saúde do município registrou na quarta-feira (03.06) 696 casos confirmados; 253 em investigação; 299 descartados e 100 óbitos.

Prudência, minha gente. Se puder, fique em casa.

Candeias, 05 de junho de 2020.

*José Ambrósio é jornalista e membro da Academia Cabense de Letras