JOVENS AUTORES – Memórias de janeiro

Por

Matheus Henrique Soares N. da Silva*

Em 23.10.2020

Foi numa tarde de janeiro que finalmente tomei a decisão que mudaria tudo, em meio ao som de cantigas roubadas e sinfonias urbanas de buzinas e gritos. Já não chovia há algumas semanas, mas o céu que coloria minha vida com você seguia contaminado por tons de cinza. Eu me lembro de quando te vi pela primeira vez. Em meio à confusão que estava minha cabeça jovem e imatura, você quebrou as paredes emocionais que eu havia construído durante toda uma vida. Violento e requintado qual o oceano negro que era seus olhos, você se aproximou de mim naquela quarta de setembro em passos rápidos e cirúrgicos, com um sorriso acolhedor estampado no rosto, que povoou meus sonhos por semanas depois daquele dia.

Nós conversamos por horas. Você me contou sobre sua família e seu passado como se me prometendo todo um futuro. Tu me enfeitiçaste com palavras difíceis e carícias leves, como o bom predador que ocultavas ser, fosse no tribunal em que trabalhavas ou na cama que passastes a compartilhar comigo seis meses após aquela noite. Eu me deixei levar pela conversa que mantivemos naquele dia e concordei com os encontros que se seguiram a partir dali. Deixei-me levar pelos beijos castos e os toques frios de mãos, pelas histórias mirabolantes que contavas sobre ti mesmo, como se fosse uma odisseia homeriana cujo único herói era você. Envenenei-me no doce perfume das rosas vermelhas que apareciam na recepção do meu prédio nos dias em que ficavas preso no trabalho. E me encantei pelo olhar catatônico que direcionavas a mim toda vez que eu entrava no recinto, com as mãos suando e procurando por ti na multidão.

… como tuas mãos, pesadas ao me abraçar, estalariam contra minha pele como o machado na madeira.

Eu mal sabia o que essa grande história romântica iria se tornar nos próximos anos. Como  teu sorriso caloroso só voltaria a contaminar minha visão quando fosse para me pedir desculpas; como teus olhos negros sempre brilhariam para mim, sua presa, antes de  manchar minha face pálida em azul e roxo com tuas mãos frias, contaminando minha pele como os esgotos fazem com os rios; como teus argumentos precisos e língua de prata me levariam a sempre questionar as razões pelas quais eu merecia tudo que estava acontecendo; como tuas mãos, pesadas ao me abraçar, estalariam contra minha pele como o machado na madeira. E, como os batimentos compassados de teu coração, que antes costumavam me ninar nas noites frias, passaram a funcionar como sirenes quando eu deitava com teu peito rente ao meu ouvido. Quanto mais alto e rápido teu coração batia, mais lírios brancos eram pintados de preto no campo de flores que eu teimava em dizer ser nosso amor. Foram assim os dias vividos em tua companhia

Tua integridade costumava me fazer sentir coisas que eu nunca pensei sentir antes. Eu te dei minha guerra e minha paz enquanto você me respondia com o silêncio que me acostumei a vincular ao que seria o perfeito equilíbrio entre duas pessoas. Eu achava que te entendia. Por isso, acreditei em cada doce mentira branca que você implantou em minha memória curta. Acreditei nas suas desculpas e nas suas promessas. Mas também acreditei na tua raiva e no teu desprezo que se mantinham ocultos com teu amor. A verdade é que nunca fui suficiente para você. Eu me enganei achando que fazia parte do mundo que passava por você, orbitando o campo gravitacional que imaginei pertencer ao sol que eras em minha vida, quando, na verdade, tu sempre fostes um buraco negro que apagava a luz das estrelas que habitava em mim.

Eu nunca pensei que o sangue que você carregaria entre os nós de seus dedos seria, na verdade, o meu.

Lembro-me de uma conversa que tive com sua irmã um dia. Ela me falou sobre como você havia entrado em uma briga na infância para defender um garoto que estava sendo atacado pelas crianças mais velhas. Ela me falou como você, em toda compostura esperada de alguém de nove anos com a língua presa, os enfrentou e saiu como vitorioso. Eu passei a te enxergar como a pessoa que sujaria as mãos de sangue por mim. Eu nunca pensei que o sangue que você carregaria entre os nós de seus dedos seria, na verdade, o meu.

Naquela tarde de janeiro, em que todas essas memórias passaram por minha mente, a decisão estava feita. Eu já havia sonhado com aquilo algumas vezes. Entrado no carro de fuga de meus pensamentos repetidamente. Eu sempre me imaginava chorando quando sentava no banco do motorista. Às vezes, até mesmo morrendo. Mas minha vista se manteve livre de lágrimas durante todo o percurso para longe do prédio, em que vivemos nos últimos oito anos. Eu tirei o resto do dinheiro que guardava em minha conta de banco antiga pouco antes de sair da cidade. Perguntei-me quando que a garota que era apaixonada por dar aulas de violão a crianças havia se tornado incapaz de tocar qualquer tonalidade que não o triste lirismo de um ré menor.

Você me ligou durante todo meu trajeto. Eu nunca ouvi nenhuma das mensagens, temendo que maldição seria lançada sobre mim no momento que ouvisse sua voz, fosse em ira ou tristeza. Só voltei a lhe ver semanas depois, acompanhada de minha melhor amiga e um advogado. Você não havia mudado em nada. Seus olhos negros e sorriso caloroso me cumprimentaram como se fosse qualquer outro dia de nossa falecida rotina. Você tentou me persuadir para fora dos acordos. Você tentou até convencer meus aliados a se voltarem contra mim. Hoje, após muito me tratar, consigo admitir, sem sentir nojo de mim mesma, que, durante as semanas que passei afastada de seu veneno, lembrei da ventania que era você nos dias bons, ao invés da tempestade destrutiva que me matava aos poucos quando eu não estava preparada.

Dizem que um erro se torna uma decisão quando repetido mais de uma vez.

Sei agora que isso era apenas minha mente tentando se convencer das coisas boas que você me trouxe, porque não se engane, eu sei que elas existiram. Mas, de nenhuma maneira, elas podem ser usadas como justificativa ou como contrapeso para todo o resto que me atingiu. Às vezes ainda me pergunto se sou culpada de tudo que ocorreu. Faz anos desde que me separei de você, mas tanto meu coração quanto meu corpo carregam as cicatrizes de seu aperto de ferro. Dizem que um erro se torna uma decisão quando repetido mais de uma vez. Entretanto, isso seria mais uma desculpa fajuta para me culpar de toda a espiral de catástrofes que foi nosso término.

Nós passamos meses entrando e saindo dos fóruns de justiça. Você deixou seu cabelo e sua barba crescerem como se para mostrar todo o sofrimento que minha falta havia feito em sua rotina. Meu advogado disse sobre como aquilo não passava de um truque barato para enganar aos presentes na mesa de negociações. Você taxou minha dor como manipuladora naqueles dias, mas ela me fez renascer entre as cores que foram tiradas do meu mundo. Eu me afoguei em lágrimas quando finalmente assinei toda a papelada jurídica, mas foi naquele oceano triste que finalmente respirei o ar que sua presença expulsou de meus pulmões.  Foi nas semanas seguintes, com a morte de minha reputação por seus lábios e falácias, que finalmente me senti viva.

*Matheus Henrique Soares N. da Silva tem 20 anos e é estudante do sexto período do curso de Medicina da Universidade de Pernambuco – UPE.

Foto destaque: “Poppy Field” de Van Gogh.

NOTA DO EDITOR

Com esta crônica assinada por Matheus Henrique Soares N. da Silva, de apenas 20 anos de idade, o blog Falou e Disse dá sequência à coluna JOVENS AUTORES. O espaço é destinado a estimular e encorajar adolescentes e jovens a compartilharem as suas ideias e os seus pontos de vista de maneira mais ampla, buscando publicar crônicas e artigos sobre os mais variados temas.

A crônica Memórias de janeiro foi editada respeitando-se a íntegra do texto recebido.

Textos para publicação no espaço JOVENS AUTORES devem ser encaminhados para o email ambrosiosantos@gmail.com