Estrelas do próprio tempo: superação, resiliência e resistência

Por

Mário Gouveia Júnior*

Em 23.10.2020

“Estrelas além do tempo” é um longa-metragem estadunidense dirigido por Theodore Melfi que retrata os desafios vivenciados por três mulheres pretas, que, nos anos 1960, trabalhavam na agência espacial americana (NASA) e contribuíram decisivamente para o sucesso da primeira missão tripulada do seu país ao espaço. Katherine Johnson, Dorothy Vaughn e Mary Jackson são as protagonistas do filme, mas representam muitas outras mulheres que precisaram lidar com muitos preconceitos, sobretudo pelo fato de atuarem num campo, à época, eminentemente masculino e branco.

A trama, baseada em fatos reais, retrata uma época repleta de acontecimentos marcantes para a História das sociedades ocidentais, tais como a luta por direitos civis e a corrida espacial, sendo esta última um dos capítulos da Guerra Fria empreendida entre União Soviética e Estados Unidos, ao longo de mais de quatro décadas.

O filme conta as contradições vivenciadas por aquelas mulheres-computadores, cujos complicados cálculos matemáticos se revelaram tão necessárias ao sucesso da missão espacial que levaria os americanos à órbita, em resposta à façanha soviética protagonizada por Gagárin, e ao mesmo tempo temerem abordagens policiais, como sucede no começo da história.

Abrir novas trajetórias sempre é mais difícil do que seguir caminhos já determinados, sobretudo quando ainda se tem que enfrentar ambientes segregados e cada vez mais exigências por qualificações.

As três mulheres protagonistas pretas, que não esperavam o impossível, resolveram viver o impossível, estar na vanguarda na conquista de direitos, quebrando paradigmas em uma sociedade reconhecidamente preconceituosa. “Como não podiam mudar a cor de sua pele”, resolveram ser as primeiras. Abrir novas trajetórias sempre é mais difícil do que seguir caminhos já determinados, sobretudo quando ainda se tem que enfrentar ambientes segregados e cada vez mais exigências por qualificações. Tais exigências, por vezes, se apresentavam de modo a quase inviabilizar o acesso a determinados postos por pessoas pretas. Isso porque determinadas instituições de formação superior não permitiam o seu ingresso àquela época.

“Sempre que temos a chance de avançar, movem a linha de chegada” é uma das muitas reflexões marcantes que pudemos flagrar no filme. Chama a atenção o fato de que se passaram quase 60 anos e essa inferência de uma das protagonistas, infortunadamente, ainda parece muito válida. A sutil exclusão que pode revelar um mercado de trabalho que se apresenta como competitivo, inserido em uma sociedade que se apresenta competitiva, e que defende a existência da livre-concorrência e a meritocracia, mas nega iguais condições de acesso a certas oportunidades a muitos, ao mesmo tempo em que segue conferindo prerrogativas e exceções a poucos.

Esse é mais um exemplar do que se convencionou chamar de “história de longa duração”, isto é, quando se flagra mais a existência de continuidades históricas do que de rupturas. A sociedade do desempenho, atualizada em seus viezes e objetivos e discursos econômicos, segue excluindo aqueles que, durante séculos, foram identificados como massa, como mão de obra, como executantes e não como pensantes. Essa sociedade segue conferindo todos os direitos, poderes e privilégios aos herdeiros dos “homens bons”, verdadeiros escolhidos.

Esses escolhidos não enfrentam e nunca enfrentaram os dramas e traumas de ser negro em uma sociedade que o oprime diariamente, nem sempre subrrepticiamente. Se no caso estadunidense o racismo tenha ficado evidente como elemento de segregação entre brancos e pretos, no Brasil, o racismo foi negado desde as primeiras décadas do século passado, quando nosso país ainda buscava uma interpretação de si mesmo, não mais como uma colônia de europeus, mas enquanto uma nação soberana. A isso implicava a construção/invenção de tradições, de um passado glorioso e de personagens-modelo históricos que pudessem inspirar as novas gerações.

Ademais, a cultuadíssima e supervalorizada tese da democracia racial, defendida por Gilberto Freyre em seu “Casa-Grande & Senzala”, contribuiu sobremaneira para que, ao longo de 50 anos, fosse construída uma história de mentalidades em que se operou a verdade, ou versão, de que a formação do povo brasileiro teria se dado mediante harmônico idílio e não por força da escravização de povos nativos e povos de nações africanas, em meio a um sem-número de violências. Sendo a violência sexual das principais contribuições para o que Freyre e outros chamariam de miscigenação – por sermos um povo mestiço, seria inconcebível sermos uma nação racista. Mas, por que, então mediatizados por plataformas digitais, presenciamos tantas atitudes racistas, algumas até que nem são necessariamente violentas em uma essência propriamente dita, mas que, por vezes, culminam em mortes de pretos e pretas?

Só havia uma coisa a ser feita: “aprender ao máximo e tornar-se valiosa”.

O filme em questão contempla muitas das realidades vivenciadas por mulheres pretas numa sociedade de brancos, inseridas num universo pretensamente masculino – o dos cálculos e da tecnologia de ponta – mas se concentra mais em passar uma mensagem de superação e resiliência; mas fundamentalmente de resistência! “A IBM vai tirar nossos trabalhos. O que podemos fazer?”. Só havia uma coisa a ser feita: “aprender ao máximo e tornar-se valiosa”.

Vale o ingresso a cena em que Mary Jackson vai ao tribunal para pedir uma autorização para ingressar numa instituição de pós-graduação que a levaria a ser a primeira mulher afro-americana a se graduar como engenheira aeroespacial. O que dizer, então, da ida de Dorothy Vaugnhan à biblioteca, com seus filhos, em busca do conhecimento que lhe faria compreender melhor a linguagem dos novos computadores? O reconhecimento, afinal, que a NASA conferiu à Katherine Johnson por seu trabalho pioneiro na viagem espacial é o que faz com que o filme tenha ganhado esse título.

Particularmente, penso que Katherine, Dorothy e Mary, como muitas outras que vieram depois delas, são, na verdade estrelas do próprio tempo, uma vez que foram influenciadas e desafiadas pelas vivências e experiências que precisaram enfrentar. Estiveram, sim, na vanguarda em prol do empoderamento da mulher preta na sociedade segregacionista estadunidense. Influenciaram, sim, outras gerações. São estrelas, e enquanto tal, carregam energia, calor e brilho inconfundíveis; é possível que leve um tempo até que sejam percebidas, mas quando são, podem iluminar, orientar caminhos e trajetórias rumo a um sem-número de aventuras. Que cada vez mais mulheres desejem o impossível e sigam inspirando outras tantas mulheres.

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.

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