Vacina, sim. Vacinar, não. O confronto entre a luz e a treva

Por

Ayrton Maciel*

Em 25.10.2020

Não é nada que surpreenda mais, apenas espanta. A ignorância de conhecimento, o obscurantismo – negação do saber e obstrução da ciência – e o integrismo fundamentalista são épocas que deveriam limitar-se a cada Era da humanidade. Não é o que acontece, quanto às crenças do ser humano. Porque, mesmo que a luz predomine, a treva sempre vai atrair. O mundo é a consequência do conflito permanente entre obscurantismo e iluminismo. Um obstrui, o outro avança.

É assim: tudo que não se conhece, amedronta; tudo que se descobre é evolução. Negar o saber é, então, negar a evolução. Como as curas, as tecnologias e o mundo novo digital alcançaram o estágio atual? Como esse saber avizinha um futuro para a humanidade – antes só ficção – se não fosse pela desobstrução do conhecimento e o isolamento do negacionismo? Ou seja, a vitória da luz sobre a treva.

A ignorância não surpreende mais, apenas espanta. Começamos a semana sob o impacto do obscurantismo político, do negacionismo da ciência, da inversão do benefício: “vacina faz mal”. É espantoso. Se vier de cientistas “ideologicamente contrários” – ou seja, a ciência tem ideologia e fronteira -, a vacina é um mal maior que a doença. O decreto está verbalizado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro: o Brasil não comprará a “vacina chinesa” contra o Coronavírus. Morram quantos possam morrer, é “ponto final”.

O Brasil não se surpreende mais, porém, a ignorância espanta, mas é sempre domada. Pelo bem dos brasileiros, não é a vontade de Bolsonaro que tem predominado. Ela tem é lhe vestido de ridículo para um papel de figurante. No entanto, pelo cargo que legitimamente ocupa, tem a capacidade de causar danos irremediáveis, irreversíveis ou comprometedores para gerações.

É estratégico o que Bolsonaro faz: o confronto permanente contra a lógica, a sensatez, a prudência e a decência. Mas, não é exclusivamente por ideologia e política. É também como funciona a cabeça do presidente: as ideias como estão organizadas e os vazios de conhecimento formulam o seu pensamento. O temperamento gera o impulso e a imagem que tem do poder provoca-lhe a sensação de ilimitado.

Ele precisa atender aos pares de princípios e de ideias e tem a necessidade de afirmar o seu poder (ou o que ele imagina ter). “Quem manda sou eu, o presidente sou eu” são só expressões repetidas de afirmação. Bolsonaro está dizendo para si mesmo, mais do que para os prós e os contras. Nada surpreende mais em Bolsonaro, apenas espanta. Quando ele diz que não vai comprar a vacina da China contra a Covid é porque a vacina “é comunista”, é de um país comunista, inimigo do maior aliado do Brasil, os Estados Unidos. Assim raciocina Bolsonaro. Não importam razão, conhecimento e ciência, nem o custo de vidas.

A vacina da China poderá não ser a melhor, poderá não ser a de maior eficácia, entretanto está no rol das possibilidades para atender a ansiedade da humanidade de contenção da pandemia. Não cabe a Bolsonaro o juízo final sobre os brasileiros. Fatalmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) será provocado, mais uma vez, e irá dizer ao presidente que ele está mais para fantoche de ideias tresloucadas e de súditos de redes sociais.

Os que se opõem às vacinas são os mesmos que propagaram, pelas redes, que a hidroxicloroquina cura a Covid, pois Bolsonaro assim falou e disse. São os mesmos que contestam a ciência, muitos que acreditam que a Terra é plana. Muitos que alardeiam que vacina faz mal porque o corpo é a própria cura. O que seria da polio ou difteria, coqueluche, tétano, hepatite B, meningites, febre amarela, tuberculose, rubéola, caxumba… se não fossem as vacinas?

Vacinação é uma obrigação coletiva e um direito individual. Numa pandemia em escalada no mundo – Espanha, França, Itália, Reino Unido, Estados Unidos adotam novas restrições para conter a segunda onda – e que já matou mais de 1,1 milhão de pessoas, a vacina é a luz em meio à treva. Se todos os números e simulações, toda a ciência e sensatez e toda a esperança apontam para uma ou mais vacinas, cabe ainda pregar que as pessoas não se vacinem? A resposta pode nos levar ao ocultismo.

Mas, como fica a liberdade de cada um? O direito a não querer se vacinar, como defende Jair Bolsonaro? Entramos no campo do Direito, das leis. Vacinar-se é uma obrigação coletiva e um direito individual, que o indivíduo pode abdicar. Um paradoxo: é direito e é dever. Para a luz da Constituição, o direito do indivíduo se sobrepõe ao bem coletivo? A sensatez diz que não.

Se o direito de escolha prevalecer, fatalmente terá de ser remetido ao Código Penal. Se uma pessoa não quer se vacinar, que não se vacine. Mas, se a pessoa propaga inverdades para que as pessoas não se vacinem, comete crime contra a coletividade. Se a pessoa que não quis se vacinar vem a se contaminar, é uma responsabilidade individual. Viver ou morrer é uma questão pessoal. No entanto, se a pessoa que não quis se vacinar vem a se contaminar e contamina outras, essa é uma responsabilidade coletiva. Caberá responder penalmente por propagar doença. Crime doloso por saber do risco que corria e que causava.

*Ayrton Maciel é jornalista. Trabalhou no Dario de Pernambuco, Jornal do Commercio e nas rádios Jornal, Olinda e Tamandaré. Ganhador do Prêmio Esso Regional Nordeste de 1991. Escreve aos domingos.
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