Diálogo de duas revoltas
Eugenio Jerônimo*
Em 25.10.2020
João do Caju foi um dos trinta mortos pelas forças do governo durante a Revolta da Vacina, que aconteceu no Rio de Janeiro, em 1904. É dele a voz com que Dona Divina conversa, em 2020, à frente do Palácio da Alvorada, em Brasília, onde sustenta um cartaz com a inscrição “Não à vacina”.
Os dois travam um longo diálogo. João pede desculpas, usando a palavra “dissimule”. Mas diz que não faz sentido em pleno século XXI as pessoas se rebelarem contra a imunização, depois da indiscutível eficiência.
Dona Divina contra-ataca. Afirma que ele não entende de tempos modernos. Agora é que é preciso reagir a essa tentativa sutil de dominar as pessoas e acabar as liberdades individuais. Nessa vacina tem um componente que rastreia os indivíduos e captura seu pensamento. Ela acha que não havia motivos é para o motim contra a vacina do início do século XX.
Ao estudar o acontecimento histórico nos bancos escolares, concluiu logo Dona Divina:
— Que povo estúpido.
Não conseguia entender como uma legião de miseráveis confrontava um governo que queria salvar-lhes as vidas, imunizá-la da varíola a que sucumbia, protegê-la das condições sanitárias que favoreciam a transmissão da febre amarela. Não aceitava a insurreição do povo, imprensado em cortiços, ao projeto do governo para modernizar o Rio de Janeiro. Afinal a capital do Brasil não poderia continuar uma cidade que se perdia em becos e escorregava em ladeiras. Ainda bem que a nação se impôs, comemorava, mesmo que para isso tenham sido assassinadas vidas, liberdades privadas e destinos deportados.
Com um “contestá-la-ei”, João causou-lhe espanto. Ela constatou:
— Então você não era pobre. Vejo que emprega a mesóclise com perfeição.
Ao que João respondeu:
— Não só era pobre, como meu pai foi escravo numa fazenda em Campos mesmo depois do 13 de maio de 1888. E nosso barraco foi um dos demolidos para implantação de uma ancha avenida.
Os dois continuaram a conversa sem chegar a um acordo. João do Caju repetia a argumentação de que a sua época tinha direito à ignorância. Ela ainda não conhecia a teoria da relatividade, não tinha cientificamente avançado entre os horrores de duas guerras mundiais, não contava com a vacina Sabin nem com e penicilina, não dispunha de rádio ou TV, muito menos de redes sociais.
Dona Divina insistia em que antigamente se vivia a idade da inocência e que todas as rebeliões do passado eram formas extremas de ignorância e ingratidão. Hoje não. Hoje uma nação quer subjugar outra com o aparente benefício de uma vacina.
Perto dali, uma jovem vê um meme num celular. Estendida em palavras, a imagem diz:
— Cada época tem o sagrado direito a sua própria estupidez.
*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria).