A sociedade atual não é uma sociedade de amor ao próximo

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Por Nelino Azevedo de Mendonça*

A condição de vida, nesse início de milênio, vem sendo, cada vez mais, ameaçada em suas dimensões física, afetiva, social e espiritual. O comprometimento das relações humanas e de convivências saudáveis nesse contexto da sociedade neoliberal vem fragmentando e causando um isolamento mórbido dos indivíduos, em virtude do esgotamento imposto pelas exigências do modelo capitalista de produção, de consumo e de resultado, além de um devastador processo de obliteração das dimensões humanas que envolvem as diferenças e singularidades dos sujeitos, comprometendo a ética da relação com o outro.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2017, 2017a, 2018)¹ denomina esse modelo de funcionamento da sociedade ocidental contemporânea pós-disciplinar como sociedade de desempenho. Na visão desse autor, esse modo de sociedade se alimenta de uma falsa liberdade que conduz o sujeito a um processo de aniquilamento e desconstrução de si. Nesse modelo de sociedade, o sujeito de desempenho continua disciplinado, porém, já não é mais o sujeito da obediência e do não-poder, agora ele usufrui de uma autonomia longe da coerção disciplinar e da hierarquia externa.

Desse modo, o sujeito é muito mais eficiente e capaz de melhores desempenhos, pois incentivado pelo fato de, agora, ser ele mesmo, e “produzir para si”, torna-se mais motivado. No entanto, continua preso ao processo de produtividade, pois precisa gerar resultados e riqueza. Han (2017, pp. 24,25) afirma que “A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, [que é uma sociedade de positividade,] ao contrário, produz depressivos e fracassados”.

O adoecimento crescente, nesse início do século XXI, por distúrbios psíquicos tem se tornado um problema de saúde mundial, decorrente de problemáticas ligadas a questões da vida pessoal dos indivíduos e a aspectos sociais. A depressão e outras doenças psíquicas têm revelado uma preocupante dificuldade que um grande contingente da população tem em lidar com suas emoções, seus próprios comportamentos e seus modos de interação social, gerando processos profundos de tristezas, medos, baixa autoestima e perda de interesse pela vida, ocasionando, tantas vezes intenções e atitudes suicidas.

Esse adoecimento da sociedade não deve ser desvinculado desse horizonte paradigmático que marca a atual sociedade, pois o que caracteriza o sujeito do desempenho, nesse contexto, é a sua condição de se tornar, por decisão própria, sujeito de si mesmo. Esse sujeito, nascido na sociedade neoliberal do desempenho institui para si um novo modo de ser, pois agora tem ao seu alcance uma existência baseada na liberdade e controle de si.

Mas é esse excesso de positividade, como diz Han, que causa um esgotamento e um consequente adoecimento do sujeito. Isso porque há uma exigência de produção excessiva que indubitavelmente vai gerar um processo destrutível de autoexploração. Esse processo de autoexploração leva o sujeito a uma situação-limite diante de si mesmo. Pois, o aspecto destruidor da sociedade de desempenho, é que, de fato, ele consiste numa falsa liberdade.

A condição humana do indivíduo numa sociedade marcada pela positividade entra em processo de degradação, na medida em que o sujeito se dá conta de sua impossibilidade de governar a si mesmo. Pois, se por um lado ele se sente livre da exploração e da obrigação imposta por outrem para produzir no trabalho, por outro lado, ele se percebe, ao mesmo tempo, escravo de si, a partir do momento que esse sujeito confronta e vê uma distopia entre o seu eu-ideal e o seu eu-real. Essa suposta autonomia de si mesmo leva a uma condição de pseudoliberdade, pois essa “soberania de si” não elimina o caráter coercitivo e de controle ao qual o sujeito está subjugado e que se expressa pela autoexploração. É esse contexto de desconstrução de si que produz um contínuo processo de adoecimento das pessoas e da sociedade.

O processo de degradação humana também se evidencia no enfraquecimento ou ausência dos vínculos afetivos, irrompendo na quebra de alteridade e no isolamento do indivíduo em si mesmo. A sociedade do desempenho estimula um individualismo exacerbado, de tal forma que a busca pelo sucesso passa a ser o projeto de uma só pessoa. Perde-se o sentido de coletividade e, consequentemente, o sujeito vê apenas em si mesmo qualquer possibilidade de conquistar uma vida boa e feliz.

O alto preço para uma vida boa e feliz exige sacrifício e perseverança suficientes para que a meta a ser atingida seja conquistada e, para isso, é necessário produzir incansavelmente, sem folga, sem férias e sem descanso, pois sendo patrão de si mesmo, não há razão para o ócio. Essa é a mais sutil forma de autoexploração imposta pelo sistema neoliberal. O sentimento de liberdade e autonomia funciona como um dispositivo neoliberal possibilitador de felicidade. Mas, no fundo, o que produz daí, é um absoluto sentimento narcísico que gera individualismos, adoecimentos e desamor, pois desfaz as pontes que ligam os seres humanos aos seus vínculos mais profundos de alteridade, que é a ética, a solidariedade, o diálogo, o afeto e o amor.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. / HAN, Byung-Chul. Topologia da violência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017a. / HAN, Byung-Chul. Psicopolítica – O neoliberalismo a as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018.

Nelino Azevedo é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras