Balas ou vidas perdidas?

Por

Fernando Silva*

31.10.2020

A memória é uma das melhores maneiras para se alimentar boas conversas e lembranças sobre o que vivemos, presenciamos. Mas, também pode ter relação com aspectos que não queremos lembrar, ou, simplesmente, fazer de conta que não aconteceu. Ou termos vergonha por ter participado do acontecido, do realizado. Outras memórias podem incomodar e nos faz pensar e escrever sobre o presenciado. Vivido. Praticado.

Os processos de colonização, a ditadura civil-militar, as torturas e as desigualdades sociais, econômicas e políticas não merecem e nem devem ser comemoradas. E, jamais esquecidos. Devemos lembrar para não repetir erros, inclusive, os políticos, econômicos. Precisamos atuar para superação das exclusões e a negação dos direitos fundamentais e da democracia, que não deve ser reduzida a eleições periódicas. Imprescindíveis, porém insuficientes.

Se a minha memória não estiver falhando, a primeira vez que escutei, ou melhor, li a expressão balas perdidas foi quando a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) lançou a publicação “Balas Perdidas: um olhar sobre o comportamento da imprensa brasileira quando a criança e o adolescente estão na pauta da violência”. Fiquei extremamente incomodado com o título do importante estudo e análise da ANDI sobre as “reportagens publicadas em 46 jornais de 24 Estados ao longo de 12 meses (de 1º de julho de 2000 a 30 de junho de 2001).” [2]

Desde aquele momento, toda vez que escuto ou leio as expressões balas perdidas o incômodo volta e agora resolvi escrever sobre o sentido e o peso das palavras das duas expressões. Sim, as palavras têm sentido e peso. Algumas pesam bastante quando juntas.

Perdido tem vários significados. Como adjetivo pode representar o que se perdeu, foi extraviado. É também um substantivo masculino, o que desapareceu. O antônimo de perdido é encontrado. Bala, substantivo feminino, normalmente é acompanhada de uma segunda expressão. Bala, pequeno doce; bala de papel bastante utilizada para perturbar em sala de aula e o trem-bala, uma referência a meio de transporte.

Observem que o uso de cada expressão (bala e perdido), separadamente, as vezes ficam sem sentido, solicita um complemento. Se digo perdido, pode indicar que eu estou perdido. Mas, vamos usar expressões, conjuntamente. Bala, no nordeste brasileiro é um pequeno doce, embrulhado em papel ou plástico.

Perder um parente, uma pessoa amiga, um ídolo, deixa marcas para sempre. Lembro-me que quando Luiz Gonzaga, Garrincha e Gonzaguinha morreram fiquei extremamente triste. O primeiro por ser a primeira e a principal referência musical da minha vida matuta no interior de Pernambuco. O segundo, só vi jogar por vídeo. Foi um genial ponta direita do Botafogo (RJ) e da seleção brasileira. E o último, o melhor compositor brasileiro, na minha opinião. Perdi meu irmão e pai, já se vão mais de duas décadas, e só o tempo contribui para ir passando a dor. Porém, as lembranças, a falta e as saudades são para sempre. Eternas. Às vezes, quando me lembro, fico triste. Os olhos lacrimejam. Choro.

Contudo, juntar as duas expressões em foco (bala + perdida) implica em projétil de armas de fogo. Nunca usei uma arma de fogo e sou totalmente contra a liberação do porte de arma.

Para alimentar o assunto, recorrendo a uma consulta na internet é possível encontrar a junção de ambas e “bala perdida tem funções sociais e políticas, pois ela implica sutilmente que não houve premeditação da parte do atirador”.[3]

Estudo da ONU atesta que o Brasil é líder no número de mortes entre os países da América Latina e Caribe por bala perdida, no biênio 2014-2015.

Quem atira, assume a responsabilidade de atingir algo ou alguém. Por exemplo, manchete de 2019, afirma que “número de pessoas baleadas em residência no Grande Rio aumentou em 79%”. Estudo da ONU atesta que o Brasil é líder no número de mortes entre os países da América Latina e Caribe por bala perdida, no biênio 2014-2015. Entre as consequências, a ONU aponta a “proliferação de armas pequenas e de munições, combinadas com uma série de variáveis institucionais, sociais e econômicas, que tem dado lugar a níveis inaceitáveis de violência armada na região”.[4]

Pronto. Chegou no ponto que quero fazer uma oposição, não sendo preciso apresentar outros dados quantitativos para problematizar o uso da expressão bala perdida. Mas, ilustro a gravidade da situação, lembrando que a Ana Carolina Neves, com apenas 08 anos, foi alvejada com tiro na cabeça, dentro de casa, quando assistia TV no Rio de Janeiro. Também não vou entrar no debate se as balas perdidas foram fruto de ação policial, confronto entre o crime organizado ou qualquer outra circunstância. Falta espaço. E preciso terminar o texto em duas laudas.

Não existem balas perdidas. Existem sim, vidas perdidas. Vidas negras das periferias brasileiras, a maioria.

O que questiono é colocar a expressão “bala” junto “perdida”, levando a ideia de que a primeira foi perdida, tendo maior importância do que a vida eliminada. Não existem balas perdidas. Existem sim, vidas perdidas. Vidas negras das periferias brasileiras, a maioria. Você pode estar achando o que escrevo sem importância. Respeito, porém, discordo profundamente. Num mundo em que as práticas violentas, das simbólicas às físicas, são, muitas vezes, justificadas, eu estou entre aquelas pessoas que buscam um mundo em que os conflitos presentes e inerentes às relações humanas (e a própria democracia) não justifiquem a eliminação do outro, simplesmente.

Nesta direção, as palavras, a linguagem, a gramática, precisam se tornar instrumentos de valorização das pessoas e das vidas humanas. Busco não ser ingênuo. Sei que vivemos numa sociedade capitalista, patriarcal, racista, adultocêntrica, LGBTfóbica e que o local de nascimento e/ou de moradia e o fato de ter alguma deficiência são marcas de exclusão socioeconômica, cultural e política. Que homicídios acontecem por balas atiradas para todos os lugares, com direção certa. Ou na (in)certeza de que vai encontrar algo, alguém. E tirar a vida.

Como assinalado, o antônimo de perdido é encontrado. Portanto, quem atira, seja policial no exercício da função, integrante do crime organizado ou chamado pacato cidadão é responsável pela bala que sai da arma de fogo encontrar um corpo, que pode ficar sem o direito de viver. Não posso concordar com a continuidade do uso junção bala + perdida, que gera homicídios. Não são acasos que se repetem com frequência que levam à normalização e naturalização. Definitivamente, as balas encontram corpos. E as vidas … são perdidas.

*Fernando Silva é mestrando em Educação, Culturas e Identidades. Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) e integrante do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Olinda – PE. Escreve quinzenalmente, aos sábados.jfnando.silva@gmail.com

[2] http://www.andi.org.br/sites/default/files/BalasPerdidas.pdf

[3] https://www.dicionarioinformal.com.br/bala+perdida/

[4] https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-08/onu-brasil-lidera-ranking-de-mortes-por-bala-perdida-na-america

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Foto destaque: Portal Correio