SALA DE CINEMA – O angustiante horror cósmico e suas representações no cinema

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 01.11.2020

Dos artistas do Século XX que trabalharam o horror em suas obras, sem sombra de dúvida o mais influente de todos foi o escritor norte-americano H. P. Lovecraft (1890-1937). Fanático pela literatura de horror, mais especificamente pelos escritos de seu conterrâneo Edgar Allan Poe, Lovecraft foi responsável por dar uma nova roupagem para o gênero do horror na literatura, o que ficou conhecido como horror cósmico ou horror lovecraftiano.

A virada para o Século XX é marcada por grandes transformações científicas e filosóficas. O evolucionismo de Darwin, a psicanálise de Freud, a física de Einstein e o materialismo científico trouxeram novas formas de ver o mundo. Mistérios que a humanidade atribuía a uma dimensão mística foram trazidos ao campo do real e um espírito cético cresceu na sociedade. O horror sobrenatural que contava histórias sobre fantasmas, vampiros, lobisomens e demônios já não possuía o mesmo impacto de antes em uma sociedade que enxergava o mundo à luz da modernidade que as ciências naturais trouxeram. O que mais chamava atenção na ficção fantástica eram as histórias de ficção científica que extrapolavam os progressos da ciência imaginando um futuro otimista e desbravador.

É nesse contexto que o horror cósmico de Lovecraft vai surgir. Diferente do horror do século XIX, que lidava com figuras como bruxas, monstros, demônios e espíritos malignos como manifestações de uma existência sobrenatural que reside em uma dimensão paralela a nossa, o horror de Lovecraft não está presente em algo paralelo ao nosso mundo, mas em algo que vai para além do nosso mundo. Mas esse “além” não quer dizer mágico, mas sim algo tão grandioso ou tão à frente do humano que a própria compreensão lógica da realidade cai por terra. Diante dessa grandiosidade resta apenas o medo do desconhecido e a loucura da incompreensão.

Do ponto de vista dos gêneros, o que o horror cósmico faz é colocar o espírito revelador da ficção científica em crise para instaurar uma angústia diante de fenômenos que a racionalidade humana não possui capacidade de explicar. Com isso, Lovecraft vai expor um sentimento de insignificância do ser humano perante o infinito do universo e todas as suas possibilidades. Seus personagens vão encarar seres ou fenômenos tão extraordinários que o único significado capaz de vir de tal experiência é o entendimento da completa indiferença do cosmos perante a existência humana.

No ensaio “O horror sobrenatural em literatura”, ele escreve sobre os dois elementos fundamentais do horror cósmico: “Precisa estar presente certa atmosfera sufocante e um terror inexplicável de forças desconhecidas e exteriores; assim como precisa haver uma sugestão, apresentada com uma seriedade e prodígio inseridos em seu tema, da mais terrível concepção gerada pelo cérebro humano – uma suspensão ou anulação de caráter maligno e singular das leis fixas da Natureza que representam nossa única proteção contra o assalto do caos e demônios do espaço insondável”. (LOVECRAFT, H. P. Grandes Contos. São Paulo: Martin Claret, 2015).

Para deixar mais claro de como é o horror cósmico vale a pena examinar a estrutura de boa parte das histórias escritas por Lovecraft. Geralmente temos um acadêmico, um cientista que se depara com algum fato que foge da sua compreensão; ele então passa a tentar entender e buscar alguma explicação lógica para tal acontecimento, mas quanto mais ele adentra dentro do mistério, mais absurdo as coisas vão se tornando; até o ponto em que o contato com tal fenômeno ocorre, gerando uma experiência impossível de ser descrita com precisão devido à falta de qualquer parâmetro existente na experiência humana; como consequência de tal experiência temos quase sempre a loucura ou uma resignação perante o caos existencial em sua mente.

Os personagens geralmente se deparam com terrores impossíveis de serem descritos em palavras.

Explicado o horror cósmico, acredito que seja perceptível a dificuldade que é adaptar esse subgênero literário do horror para o cinema. O principal problema vem da natureza abstrata que temos nas histórias. Os personagens geralmente se deparam com terrores impossíveis de serem descritos em palavras. Como transpor isso para a tela do cinema, onde a história toda é contada através da visão e da audição? Bem, alguns cineastas tentaram capturar o horror cósmico em suas obras de diferentes maneiras, uns não conseguiram tão bem e outros fizeram obras que conseguem representar bem a atmosfera dos contos lovecraftianos, mesmo não sendo adaptações diretas do seu trabalho. Vamos focar nos que conseguiram.

O mais reconhecido de todos foi o mestre do terror, John Carpenter. Na sua obra-prima O Enigma de Outro Mundo (1982), o cineasta consegue passar toda a loucura e paranoia comum do horror cósmico ao contar a história de pesquisadores vivendo confinados em uma base na Antártica; lá, eles encontram uma forma de vida totalmente estranha que consegue assumir a aparência de qualquer ser vivo que ela tenha consumido anteriormente, assim uma atmosfera de desconfiança e paranoia é instaurada na tripulação, que passa a desconfiar da identidade de todos entre si por causa de uma entidade desconhecida que não pode ser descrita devido a sua natureza de constante mutação.

Carpenter também vai dirigir o ótimo À Beira da Loucura (1995), outro filme influenciado pela obra de Lovecraft. O filme vai contar a história de um investigador de uma empresa de seguros contratado por uma editora de livros para encontrar um escritor best-seller de livros de horror que misteriosamente desapareceu após escrever seu último livro. Conforme o investigador vai encontrando pistas sobre o paradeiro do escritor as coisas começam a ficar estranhas e confusas e o senso do real é cada vez mais perdido. Acompanhamos – como nas histórias de Lovecraft – um homem cético adentrando em um mundo que ele inicialmente despreza, mas que se mostra cada vez mais enigmático e inexplicável, um mundo que quanto mais ele adentra, mais a loucura toma conta de sua mente como única opção capaz de suportar o peso da existência.

Outro exemplo de horror cósmico no cinema pode ser visto no sublime, impecável e brilhante filme do australiano Peter Weir, Picnic na Montanha Misteriosa (1975). Passado no início do Século XX, em uma colégio interno feminino no interior da Austrália, acompanhamos a ida das alunas para um piquenique em Hanging Rock, região de florestas e montanhas rochosas. Durante o piquenique algumas alunas e uma professora misteriosamente desaparecem pelas gigantescas rochas da região; uma busca é iniciada pela polícia e moradores em busca das garotas e enigmas insolúveis são colocados perante os personagens. De todos os filmes apresentados aqui e que ainda vão ser apresentados, provavelmente esse é o que possui a premissa mais distante do que é visto comumente no horror cósmico, mas, em contrapartida, ele é o que melhor transmite uma atmosfera de mistério e impotência diante de algo que transcende a racionalidade humana, característica fundamental do horror cósmico. Tudo isso através da direção magistral de Weir. E, pelas palavras do próprio Lovecraft, “a atmosfera é o elemento mais importante, já que o critério de autenticidade último não é o encadeamento da trama, mas a criação de uma sensação específica”, e isso Picnic… consegue fazer como nenhum outro.

Nos últimos anos, o horror cósmico, que no cinema era abordado muito pontualmente, ganhou uma maior popularidade e diversos filmes que flertam diretamente com o gênero foram realizados. Destacarei os três que mais me chamaram atenção.

O primeiro é de 2018 e foi dirigido pelo inglês Alex Garland, nome que já possui força dentro da ficção científica pelo excelente Ex_Machina: Instinto Artificial (2014), e se chama Aniquilação. Esse é o filme que mais vai lidar com a mescla entre horror e ficção científica que permeia o horror cósmico, já que vemos um grupo de cientistas investigarem um objeto misterioso que caiu na Terra e mudou o espaço, o tempo e a biologia de tudo na região próxima ao seu local de queda. A premissa é praticamente a mesma de “A Cor que Caiu do Espaço”, conto de Lovecraft, (que inclusive foi adaptado recentemente pelo diretor Richard Stanley em um filme estrelado por Nicolas Cage, mas que não foi tão feliz como adaptação de um conto de horror cósmico). O maior mérito de Aniquilação em relação ao horror cósmico é a capacidade de conseguir traduzir em imagens a abstração presente nos textos desse subgênero sem diminuir em nada o impacto presente desse tipo de narrativa. Assim como Carpenter inventivamente cria um ser sem forma definida, Garland vai atrás de algo parecido mas que possua uma vastidão e uma impraticabilidade tão grande em sua forma que seja próximo do impossível a descrição com palavras.

Mais cedo falei de como Picnic na Montanha Misteriosa consegue transmitir a atmosfera do horror cósmico como nenhum outro, mas O Farol (2019), de Robert Eggers, talvez seja o filme que consiga melhor se aproximar ou até mesmos se igualar ao filme de Weir nesse quesito. Fim do século XIX, dois homens, um marinheiro experiente e um novato do campo, vão para uma pequena e misteriosa ilha na região de New England (curiosamente, local onde a maioria das histórias de Lovecraft se passam) cuidar de um farol. Lá, eles passam por experiências incomuns e inexplicáveis e a linha que divide o real do sobrenatural e da alucinação passa a ficar cada vez menor e, consequentemente, o sentido das coisas vão se perdendo, restando apenas impulsos e sensações.

O último filme que destaco é o paraibano A Noite Amarela (2019), de Ramon Porto Mota. É o fim do ensino médio e um grupo de amigos vão comemorar em uma ilha com poucos moradores. Lá, horrores e mistérios cósmicos se apresentam para os jovens. O grande mérito de Mota foi misturar o horror cósmico com o coming of age, uma história de amadurecimento. Mais do que misturar, ele encontra a interseção entre esses dois gêneros tão distintos. Tanto no coming of age, quanto no horror cósmico a sensação de pequenez que se mostra no encontro com um novo e enigmático mundo é o que move a trama. Assim, o horror cósmico funciona bem como uma representação hiperbólica das inúmeras incertezas, das incontáveis possibilidades que o futuro guarda e que um adolescente geralmente encara nesse período da vida. Essa ideia até está presente em Picnic na Montanha Misteriosa, mas não tão desenvolvida quanto aqui.

Essa espécie de revival do horror cósmico, sendo atualmente mais popular do que nunca, mostra bem como o sentimento de busca por entendimento de um universo de sentidos infindáveis e o espanto perante a grandiosidade desse mundo que tentamos entender são comportamentos sempre presentes na humanidade. Enquanto o horror cósmico tira qualquer esperança da razão como chave unicamente tradutora do mundo, ele permite a maravilha do infinito e das possibilidades. O horror cósmico apresenta um mundo que nunca cessa.

*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque de Cinema no Instagram. Escreve aos domingos.