O eterno desrespeito à mulher
Luiza Nagib Eluf*
Em 09.11.2020
O recente episódio, ocorrido em Florianópolis, envolvendo o julgamento do empresário André de Camargo Aranha e a jovem influencer Mariana Ferrer escancarou a condição de subalternidade da mulher na sociedade brasileira. Não há dúvida de que o preconceito varia de acordo com o local, a cidade ou o estado da federação, além do grau de instrução dos envolvidos, mas a triste constatação é de que o machismo sempre está presente, em maior ou menor grau, quando se trata dos direitos sexuais das mulheres. Sabemos ser uma situação que afeta o mundo todo, pois resulta do sistema patriarcal, mas o brasil é por demais ignorante em relação aos direitos da mulher.
Mariana foi vítima de estupro, segundo ela mesma revelou à Justiça, e suas declarações foram secundadas por sua mãe, que também foi ouvida pelas autoridades. No entanto, ao que tudo indica, o juiz e o promotor de justiça optaram por não dar credibilidade às informações prestadas pela moça, pela testemunha e pela perícia, e o réu acabou absolvido. Não bastasse a aparente falta de isenção dos encarregados, pelo estado, de fazer justiça, Mariana foi achincalhada pelo causídico do réu, que exibiu fotos dela colhidas da internet e que nada tinham a ver com o caso em julgamento.
Mariana informou que foi dopada e estuprada pelo réu André Aranha em um camarim privado de uma casa noturna, em 2018. Conforme divulgado, nas roupas que ela usava a perícia encontrou sêmen do acusado. Como ela não estava em seu juízo perfeito por ter sido dopada, obviamente não tinha condição de reagir ao ataque sexual que sofreu. Tal conduta configura “estupro de vulnerável”, nos termos do artigo 217-A do Código Penal, para o qual a pena é de 8 a 15 anos de reclusão.
Por sua vez, a jurisprudência pátria é torrencial no sentido de que, em crimes como o estupro, geralmente cometidos “à puridade”, ou seja, sem a presença de testemunhas, a palavra da vítima tem especial relevância e deve prevalecer sobre a versão do réu. No entanto, espantosamente, no julgamento de Florianópolis, o juiz não entendeu assim e nem o promotor, incumbido de defender a sociedade do crime. A jurisprudência majoritária foi desconsiderada, assim como a versão da vítima e de sua mãe. O réu foi absolvido e mariana “condenada à humilhação” por uma sociedade desigual, preconceituosa, machista e ignorante dos direitos da mulher, expressamente estabelecidos na Constituição Federal de 1988 e em outros diplomas legais, dentre os quais o Código Penal e a Lei Maria da Penha.
Tal acontecimento revoltou as pessoas de bem: as mulheres, os juristas, as feministas, as promotoras e procuradoras de justiça, as juízas, desembargadoras, ministras e autoridades de forma geral além de pessoas do povo. Claro que alguns desavisados saíram em favor do réu absolvido, mas nossa indignação vai além do caso concreto, ela atinge todos os habitantes do brasil. Onde não há respeito, não há paz, não há direitos. Mulheres estão equiparadas aos homens, conforme determina nossa lei maior, a constituição federal. Elas têm, inclusive, obviamente, o direito de escolher quando e com quem querem, ou não, manter uma relação sexual.
*Luiza Nagib Eluf é advogada, foi Promotora e Procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça, no governo FHC. É autora de sete livros, entre os quais “A paixão no banco dos réus” (ed. Saraiva).
Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico.
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