A cultura da intimidade como aniquilação do bem comum

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 11.11.2020

Vivemos numa sociedade em que a transparência ganhou um valor incalculável e passou a ser uma exigência no mundo da política e no âmbito das relações humanas. A transparência tornou-se um imperativo para caracterizar a lisura, a liberdade da informação, a demonstração de honestidade e a clareza dos sistemas que controlam dados, operações e fazem a gestão de governos. Esse processo de transparência colocou o joio e o trigo numa mesma vala e sem a criterização de outros aspectos determinou por si mesmo um nível de excelência inquestionável. Devemos, no entanto, chamar a atenção para o fato de que olhar a transparência apenas pelo aspecto da corrupção e da disponibilização das informações é uma miopia desmedida e comprometedora de questões vinculadas ao próprio ser humano. (HAN, 2017), Sociedade da Transparência, Vozes.

Nesse sentido, somos todos coagidos a atitudes e práticas de transparências, mesmo que isso evidencie uma perda da individualidade e da própria condição de ser de si mesmo, unificando-nos e igualando-nos numa imensa vala comum, onde temos que agir igualmente, para salvaguardar o imperativo da transparência. A transparência tornou-se um processo sistêmico e se enraizou por todo o tecido da sociedade, abarcando consequentemente o ser humano, pois ela é uma exigência da sociedade que não admite resistências e, por isso, atua na perspectiva da uniformização. Ela acentua a positividade na sociedade, por isso faz sucumbir as possibilidades de resistências, e elimina gradativamente a negatividade, retirando dos sujeitos as suas potencialidades de contraposição.

Han afirma que “a sociedade da transparência, enquanto sociedade da revelação e do desnudamento, trabalha contra qualquer forma de máscara, contra a aparência” (2017, p.82). Isso implica dizer que nessa sociedade o sujeito é despersonificado, descaracterizado, diluído, já que máscara em latim é persona, que por sua vez significa pessoa. Essa despersonificação é também uma forma de desqualificação do sujeito, pois retirar a máscara é uma forma de invalidar e rejeitar as suas singularidades e igualizá-lo, eliminando seus traços identitários e culturais. Essa é uma das razões para que a sociedade da transparência gere a cultura da intimidade no contexto social. Para Han, “A intimidade é a fórmula psicológica da transparência; imagina-se alcançar a transparência da alma revelando-se os sentimentos e emoções íntimos, desnudando-a” (2017, p.81).

As redes sociais estabelecem uma proximidade de tal forma que o espaço de intimidade que ali é gerado perde a noção da dimensão do público, tornando-se muito mais um ambiente do privado.

Essas questões podem ser verificadas no ambiente do mundo digital, no qual as pessoas estabelecem relações de intimidades porque se situam numa zona de conforto na qual não há contraposição, ali todos são iguais e compartilham dos mesmos interesses. O mundo digital quebra a distância necessária para a dimensão do reconhecimento do outro, isso é uma forma de inviabilizar a alteridade. As redes sociais estabelecem uma proximidade de tal forma que o espaço de intimidade que ali é gerado perde a noção da dimensão do público, tornando-se muito mais um ambiente do privado. Dessa forma, a transparência como indutora dessa cultura da intimidade possibilita o esfacelamento do público em detrimento do privado.

Nesse sentido, ocorre uma total desconstrução do público porque se valoriza tudo que é vinculado à dimensão da intimidade; há uma exacerbação do privado e, portanto, daquilo que incide na intimidade do outro. Por isso, o que deve se tornar público já não é mais o que promove o bem comum, mas aquilo que promove e publiciza o indivíduo. Nisso, a política se transformou num espaço promissor e espetacular para a encenação da intimidade e do privado. Dessa forma, o político já não é escolhido pelo que ele representa como possibilidade de promover o público, na perspectiva do bem comum, mas pelo que ele construiu nesse espaço midiático de encenação de si. O que importa é ser avaliado não pelo que ele pratica e realiza, mas pelo que ele promove como imagem de si. A sociedade da intimidade solidifica um processo que vai abrindo espaço para que o público se constitua num lugar em que o comum ceda para o individual. A cultura da intimidade faz a sociedade perder de vez o seu valor de coletividade e de socialização e estabelece de forma destruidora e decadente a política da individualização.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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